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quarta-feira, 2 de julho de 2025

Essencialismo

 

Estava aqui pensando: ainda somos o que nascemos para ser?

A gente costuma ouvir desde pequeno que certas pessoas "nasceram para aquilo". Tem gente que "já nasceu líder", "tem o dom do cuidado", ou "é artista desde o berço". E o curioso é que, às vezes, a própria pessoa acredita nisso também. Mas será mesmo que existe algo em nós que já vem pronto, desde sempre? Algo essencial que define quem somos, o que queremos, e como devemos viver? Foi pensando em uma conversa sobre profissões que não combinam com a pessoa, sobre jeitos de ser que "não têm nada a ver com ela", que o tema do essencialismo me voltou à cabeça.

Na filosofia, o essencialismo é essa ideia de que as coisas — inclusive as pessoas — têm uma essência fixa e imutável. Que há algo dentro de nós, anterior a qualquer escolha, que determina o que somos de verdade. É uma noção antiga, com raízes em Platão e Aristóteles. Para Platão, existiria um mundo das ideias perfeitas, e tudo que vemos é uma cópia imperfeita daquilo. Para Aristóteles, cada ser tem uma essência que define seu propósito: a semente tem a essência da árvore, o cavalo tem a essência de correr, o ser humano, a de pensar.

Mas o essencialismo não ficou lá na Grécia Antiga. Ele atravessa os séculos e se esconde nas frases que repetimos no dia a dia: "mulher que é mulher cuida da casa", "homem que é homem não chora", "você não nasceu pra isso". Ou seja, usamos a ideia de essência pra justificar o que as pessoas podem ou não podem ser. E isso pode ser bem limitador.

O essencialismo também aparece com força nos debates sobre cultura, imigração e emigração. Quando se diz, por exemplo, que “o brasileiro é naturalmente caloroso” ou que “o europeu é frio por essência”, estamos usando uma lente essencialista para descrever comportamentos que, na verdade, são históricos, sociais e aprendidos. Esse tipo de visão pode ser perigoso, pois congela culturas em estereótipos e dificulta o acolhimento de quem migra. Um imigrante é, muitas vezes, visto como alguém que “não pertence”, como se fosse impossível ele se adaptar sem “trair sua essência”. Já quem emigra pode sofrer cobranças para “não esquecer suas raízes”, como se fosse errado mudar. O essencialismo cultural alimenta fronteiras invisíveis, mesmo quando os passaportes dizem que a viagem foi feita. Entender que identidades culturais são flexíveis e híbridas permite que pessoas vivam o que são hoje, sem serem prisioneiras do que se espera que sejam.

As questões de gênero também são fortemente atravessadas pelo pensamento essencialista. Quando se diz que homens são naturalmente racionais e mulheres, naturalmente emocionais, está se ignorando o papel das construções sociais e das expectativas culturais. Crianças são criadas com brinquedos, roupas e ideias diferentes desde o berço, e depois essas diferenças são lidas como “naturais”. Pior: pessoas trans ou não-binárias muitas vezes são vistas como “contra a natureza” simplesmente porque não se encaixam nos padrões fixos do que se supõe ser um homem ou uma mulher. Mas o gênero, como tantas outras dimensões da vida humana, pode ser visto como uma experiência vivida, múltipla e fluida, e não como algo pré-definido por um manual biológico. Questionar o essencialismo de gênero é abrir espaço para mais liberdade, mais respeito e mais possibilidades de ser.

O existencialismo, especialmente com Jean-Paul Sartre, vai criticar essa visão. Para ele, a existência vem antes da essência. Ou seja, nós não temos uma essência pronta — nós a construímos com nossas escolhas. Não há um “ser mulher” ou “ser homem” dado por natureza, mas um tornar-se. Simone de Beauvoir diria: “Não se nasce mulher: torna-se mulher”. Aqui, a liberdade entra em cena. Somos responsáveis pelo que fazemos com o que fizeram de nós.

No cotidiano, pensar fora do essencialismo significa permitir que uma menina queira ser mecânica e que um menino possa gostar de balé sem que ninguém diga que “isso não combina com ele”. É aceitar que alguém pode mudar de carreira aos 50 anos, ou que uma pessoa tímida pode se tornar uma excelente oradora. O perigo do essencialismo é que ele parece inocente, mas acaba sustentando preconceitos, desigualdades e até violências.

O filósofo contemporâneo brasileiro Vladimir Safatle chama atenção para como o essencialismo serve muitas vezes para conservar estruturas de poder:

“Toda vez que alguém disser que algo é da ‘natureza humana’, é bom desconfiar — essa frase costuma ser o fim da conversa e o início da dominação.”

Nas redes sociais, o essencialismo ganha uma vitrine global e um microfone potente — ali, traços individuais ou culturais são frequentemente reduzidos a rótulos rápidos e julgamentos prontos: “isso é típico de mulher”, “isso é coisa de latino”, “fulano tem alma de artista”, como se um vídeo curto ou uma frase de efeito revelasse a essência profunda de alguém. Nesse palco planetário, onde bilhões se observam em tempo real, o essencialismo é reforçado pelos algoritmos que preferem identidades fixas e previsíveis, fáceis de segmentar e vender. O perigo é que, sob o pretexto da autenticidade, muitos acabam encenando versões de si mesmos que se encaixem nas expectativas do público — virando personagens de uma essência construída para ser consumida.

Desconfiar do essencialismo não significa negar que temos traços, preferências, temperamentos. Mas significa entender que isso tudo é matéria viva, que muda com o tempo, com os encontros, com as experiências. Talvez não sejamos aquilo que nascemos para ser — talvez sejamos aquilo que ousamos construir em nós mesmos.

E isso é tão mais libertador, não?

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