O Tempo Leva o Que Nunca Foi Nosso
Tem
dias que a gente acorda se olhando no espelho com um estranhamento leve, como
quem revê um parente distante. Aquela ruga nova, o cabelo que já não obedece, a
pele que grita por descanso. E, mesmo sem querer, lembramos das fotos antigas,
dos corpos que tivemos ou desejamos ter, dos elogios recebidos e dos silêncios
constrangedores. É nesse jogo entre aparência e memória que as vaidades
ridículas se escondem — vaidades que o tempo, com sua elegância implacável, vai
retirando de cena.
O
corpo como vitrine social
O
corpo humano, talvez mais que qualquer outro elemento visível da nossa
existência, foi sequestrado pela cultura. O que deveria ser abrigo e expressão
da individualidade virou produto, vitrine, símbolo de status. Modelos sociais
de beleza mudam com a velocidade de um clique: o que ontem era invejado, hoje é
ultrapassado, e o que hoje é tendência, amanhã será ridículo.
Na
década de 50, a silhueta curvilínea era o auge do desejo. Nos anos 90, os
corpos magérrimos dominaram. Hoje, a beleza se mistura com performance: é
preciso estar em forma, mas sem parecer que se esforça demais. É o culto ao
“natural trabalhado”, onde tudo é artificial, mas tem que parecer espontâneo.
Uma simulação de leveza num sistema pesado.
A
vaidade como sintoma de pertencimento
Mais
do que vaidade, trata-se de pertencimento. Moldar-se ao ideal vigente é uma
forma de não desaparecer. Quando seguimos os padrões, não apenas buscamos
reconhecimento — buscamos evitar o abandono simbólico. Quem não é belo segundo
os padrões corre o risco de ser ignorado, de se tornar invisível. E
invisibilidade social é uma das formas mais cruéis de exclusão.
Há
uma radicalidade silenciosa — e por vezes brutal — nas mutilações modernas
feitas em nome da beleza. Corpos cortados, costurados, preenchidos, raspados,
esvaziados ou inflados, numa busca angustiada por pertencimento estético. O
bisturi, que antes era símbolo de reparo, tornou-se ferramenta de
reconfiguração da identidade. Mamas retiradas e recolocadas, costelas
removidas, narizes moldados como se fossem argila, pele esticada até que perca
a expressão. O que deveria ser autocuidado vira autonegação. É a dor disfarçada
de estética, a cirurgia plástica como ritual de passagem para um ideal que,
paradoxalmente, é cada vez mais inatingível. A mutilação aqui não é só física —
é simbólica: apaga-se a história do próprio corpo para caber numa moldura
inventada por algoritmos e publicidades.
O
tempo como libertador
O
tempo é o grande destruidor de ilusões. Não porque ele castiga o corpo — mas
porque ele revela o quão frágeis são as nossas referências. A beleza da
juventude envelhece. O rosto que ditava moda vira meme. O ícone de ontem se
torna caricatura.
É
curioso pensar que, com o tempo, algumas pessoas ganham uma beleza que antes
não tinham: a beleza de quem não precisa mais provar nada. O sorriso mais
solto, a roupa mais confortável, a presença mais inteira. Como escreveu Simone
de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher” — e talvez não
se nasce belo, mas se aprende a habitar o próprio corpo com dignidade e calma.
O
novo olhar: o corpo que fala
Um
ensaio sociológico inovador sobre beleza precisa levar em conta que estamos,
hoje, diante de uma multiplicidade de corpos e estéticas que desafiam os
modelos antigos. A internet abriu espaço para vozes que antes eram
marginalizadas: corpos gordos, pretos, trans, maduros, marcados por cicatrizes
ou doenças, todos ganhando voz e visibilidade.
Essa
revolução silenciosa não elimina a tirania dos padrões, mas a questiona. Há um
deslocamento importante: da beleza imposta para a beleza assumida. Uma estética
do eu, e não do dever ser.
A
autoestima como construção interna
Entre
a negação do corpo imposto e o acolhimento do corpo real, há um espaço de
reconstrução: o da autoestima ativa. Fazer algo por si — mudar o corte de
cabelo, praticar uma atividade física, cuidar da alimentação, dançar, vestir-se
com liberdade, fazer terapia — pode ser profundamente transformador. Quando
esses gestos partem de um desejo genuíno de bem-estar e não da vergonha de si,
eles se tornam potências de afirmação. A autoestima verdadeira não nasce do
espelho, mas do encontro consigo mesmo, da aceitação gradual da própria
história. Cuidar-se, então, deixa de ser obediência estética e vira celebração
íntima.
A
vaidade que resta
Não
há problema em gostar do que é belo, em querer parecer melhor. O problema está
em se tornar escravo disso. O tempo não destrói a vaidade — ele peneira. Vai
retirando as vaidades ridículas e deixando apenas aquelas que nos tornam mais
humanos, mais leves, mais honestos com nós mesmos.
Como
escreveu o filósofo brasileiro N. Sri Ram, em A Natureza da Beleza:
"A
beleza verdadeira é aquela que revela o íntimo, não a que o encobre."
E
talvez seja esse o ponto: que o tempo nos leve tudo que encobre. E nos deixe,
enfim, com o que somos.
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