Um ensaio filosófico com pés descalços e olhos abertos
Às
vezes, entre o barulho do trânsito e a pressa dos dias, nosso olhar se perde
num detalhe inútil: uma rachadura bela numa parede antiga, o modo como a luz
atravessa um copo com água, a coreografia casual de folhas levadas pelo vento.
Não estávamos procurando nada disso. Mas algo dentro de nós suspendeu o tempo
e, por segundos, vivemos num devaneio estético — um mundo sem função, sem
compromisso, sem resposta. Só o ver pelo ver, o sentir pelo sentir.
Mas
o que é esse instante em que o mundo parece se justificar apenas pela sua
aparência? O devaneio estético, diferente da contemplação artística dirigida, é
um colapso suave do senso prático, um mergulho involuntário no supérfluo que se
revela essencial. Não é preciso museu nem pintura famosa: o devaneio estético
nasce no inesperado, no cotidiano comovente, no toque leve do real que se
mostra de um jeito novo. Ele é uma brecha na funcionalidade das coisas.
A
percepção que dança
Ao
contrário da percepção utilitária, que busca informações, caminhos e soluções,
o devaneio estético nos retira da lógica de uso. Gaston Bachelard, em A
Poética do Espaço, já havia intuído que o devaneio é uma espécie de
descanso da razão, onde a imaginação ganha sua própria casa. Mas quando esse
devaneio é estético, ele não apenas imagina — ele vê, escuta, toca, sente. É
uma experiência encarnada, mas sem propósito.
O
filósofo francês Merleau-Ponty também pode nos ajudar aqui. Para ele, o
corpo é o ponto zero da experiência, e é por ele que o mundo se revela. No
devaneio estético, não estamos fora do corpo, mas mais intensamente dentro
dele: é o corpo que nos guia até o instante belo, não a mente que o planeja.
Por isso, o devaneio estético é sempre uma surpresa. Ele nos encontra — não o
contrário.
O
inútil que funda o sentido
Vivemos
cercados de discursos sobre produtividade, otimização e finalidade. Mas o
devaneio estético nos devolve o direito ao inútil. E é aqui que a filosofia
pode se rebelar contra sua própria sisudez: pensar o estético como forma de
existência sem teleologia, onde o fim não é exterior à própria experiência, mas
está nela. Como dizia Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” —
mas é justamente aí que está sua potência.
Em
tempos de algoritmos que preveem nosso gosto, o devaneio estético é uma
insubmissão silenciosa: ele escapa ao cálculo, ao marketing, à lógica da
tendência. Ele é pessoal, íntimo e intransmissível. É o momento em que não nos
tornamos consumidores de beleza, mas cúmplices dela.
O
ser que se desarma
O
devaneio estético exige um certo esvaziamento. Não se entra nele com o peito
inflado ou a mente armada. É preciso um tipo de disponibilidade, quase uma
ingenuidade. Nisso, ele se aproxima de uma experiência espiritual, ainda que
sem dogma. É uma forma de humildade diante do real. Ver a beleza não porque ela
se impõe, mas porque nos deixamos afetar.
Nietzsche
dizia que só poderíamos criar beleza quando houvesse em nós um caos. O devaneio
estético é talvez a dança efêmera desse caos com a forma — um instante onde o
mundo se apresenta sem necessidade de explicação, e nós, por um momento,
paramos de querer explicá-lo.
Epílogo
despretensioso
Talvez
o devaneio estético não nos torne mais sábios, nem mais produtivos. Mas ele nos
faz lembrar que existe algo em nós que ainda é capaz de maravilhamento. E isso,
por si só, já vale o instante. Um instante que, quem sabe, seja o mais
verdadeiro dos dias.
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