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sábado, 26 de julho de 2025

Devaneio Estético

Um ensaio filosófico com pés descalços e olhos abertos

Às vezes, entre o barulho do trânsito e a pressa dos dias, nosso olhar se perde num detalhe inútil: uma rachadura bela numa parede antiga, o modo como a luz atravessa um copo com água, a coreografia casual de folhas levadas pelo vento. Não estávamos procurando nada disso. Mas algo dentro de nós suspendeu o tempo e, por segundos, vivemos num devaneio estético — um mundo sem função, sem compromisso, sem resposta. Só o ver pelo ver, o sentir pelo sentir.

Mas o que é esse instante em que o mundo parece se justificar apenas pela sua aparência? O devaneio estético, diferente da contemplação artística dirigida, é um colapso suave do senso prático, um mergulho involuntário no supérfluo que se revela essencial. Não é preciso museu nem pintura famosa: o devaneio estético nasce no inesperado, no cotidiano comovente, no toque leve do real que se mostra de um jeito novo. Ele é uma brecha na funcionalidade das coisas.

A percepção que dança

Ao contrário da percepção utilitária, que busca informações, caminhos e soluções, o devaneio estético nos retira da lógica de uso. Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, já havia intuído que o devaneio é uma espécie de descanso da razão, onde a imaginação ganha sua própria casa. Mas quando esse devaneio é estético, ele não apenas imagina — ele vê, escuta, toca, sente. É uma experiência encarnada, mas sem propósito.

O filósofo francês Merleau-Ponty também pode nos ajudar aqui. Para ele, o corpo é o ponto zero da experiência, e é por ele que o mundo se revela. No devaneio estético, não estamos fora do corpo, mas mais intensamente dentro dele: é o corpo que nos guia até o instante belo, não a mente que o planeja. Por isso, o devaneio estético é sempre uma surpresa. Ele nos encontra — não o contrário.

O inútil que funda o sentido

Vivemos cercados de discursos sobre produtividade, otimização e finalidade. Mas o devaneio estético nos devolve o direito ao inútil. E é aqui que a filosofia pode se rebelar contra sua própria sisudez: pensar o estético como forma de existência sem teleologia, onde o fim não é exterior à própria experiência, mas está nela. Como dizia Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” — mas é justamente aí que está sua potência.

Em tempos de algoritmos que preveem nosso gosto, o devaneio estético é uma insubmissão silenciosa: ele escapa ao cálculo, ao marketing, à lógica da tendência. Ele é pessoal, íntimo e intransmissível. É o momento em que não nos tornamos consumidores de beleza, mas cúmplices dela.

O ser que se desarma

O devaneio estético exige um certo esvaziamento. Não se entra nele com o peito inflado ou a mente armada. É preciso um tipo de disponibilidade, quase uma ingenuidade. Nisso, ele se aproxima de uma experiência espiritual, ainda que sem dogma. É uma forma de humildade diante do real. Ver a beleza não porque ela se impõe, mas porque nos deixamos afetar.

Nietzsche dizia que só poderíamos criar beleza quando houvesse em nós um caos. O devaneio estético é talvez a dança efêmera desse caos com a forma — um instante onde o mundo se apresenta sem necessidade de explicação, e nós, por um momento, paramos de querer explicá-lo.

Epílogo despretensioso

Talvez o devaneio estético não nos torne mais sábios, nem mais produtivos. Mas ele nos faz lembrar que existe algo em nós que ainda é capaz de maravilhamento. E isso, por si só, já vale o instante. Um instante que, quem sabe, seja o mais verdadeiro dos dias.

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