Outro dia, numa roda de conversa, alguém perguntou: "Será que fazer o certo é sempre o certo, ou depende de quem manda?" A pergunta soou inocente, quase boba, até que me lembrei de Sócrates parado na porta do tribunal, puxando conversa com Eutífron — um sujeito tão certo de si que tinha coragem de processar o próprio pai em nome da justiça. Sim, o mesmo Sócrates que logo depois seria condenado por impiedade e corrupção da juventude.
Essa
cena, que Platão eternizou no diálogo Eutífron, é um retrato cruel da
inquietação humana diante do bem: o que é o justo? é justo porque é certo em
si, ou só porque alguém — seja um deus, um pai, ou um juiz — diz que é?
A
discussão começa simples, mas logo vira um abismo conceitual. Eutífron tenta
explicar que o piedoso é aquilo que agrada aos deuses. Sócrates sorri, levanta
a sobrancelha e pergunta: “Mas os deuses não discordam entre si?” — um
argumento tão atual quanto os debates na internet sobre o que é “moral” ou
“ofensivo”. No fundo, Sócrates quer saber: existe um bem maior que qualquer
opinião, mesmo a divina?
A
moral que precede o sagrado
Imagine
que você vive num mundo em que todos os deuses decretam que matar é bom. Você
mataria? Se sua resposta for “não”, talvez você tenha intuições morais que não
dependem da vontade divina — uma bússola interna que aponta para além do
céu.
O
dilema de Eutífron, quando perguntado se algo é bom porque os deuses amam,
ou se os deuses amam porque é bom, ainda pulsa em debates éticos
modernos. Quando governos, igrejas ou algoritmos nos dizem o que é certo, surge
a mesma dúvida: estamos obedecendo por medo, por conveniência, ou porque
compreendemos a justiça do ato?
Talvez
o que Sócrates sugeria é que a verdade moral não é feita de obediência, mas
de discernimento. Piedade, portanto, não seria repetir mandamentos, mas
investigar, sentir, hesitar, perguntar. Ser piedoso, nesse sentido, é um
exercício de atenção profunda, não de submissão.
Piedade
sem deuses: um salto de fé filosófico
E
se a piedade for uma ética do cuidado, da escuta e da consciência, independente
dos deuses? E se for menos sobre rituais e mais sobre reconhecer a dignidade do
outro? Em tempos de polarização, em que todo mundo se acha moralmente superior,
talvez a verdadeira piedade seja o desconforto de não saber ao certo se
estamos certos.
Nesse
sentido, Sócrates é o verdadeiro piedoso — não porque acredita nos deuses da
cidade, mas porque não acredita cegamente em nada. Sua piedade é a do
homem que duvida, investiga, e por isso respeita o mistério do que é o justo.
Para
terminar com mais dúvida do que certeza
O
diálogo de Platão não oferece respostas prontas — e essa é sua beleza. Ele nos
dá a companhia de Sócrates, que nos sussurra: “Não basta crer, é preciso
compreender.” E quando até os deuses discordam, talvez a única forma de
piedade verdadeira seja a humildade de perguntar, ainda que o mundo inteiro já
tenha dado suas respostas.
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