Um ensaio sobre a multidão invisível
Todo
mundo disse que não era uma boa ideia. Todo mundo compartilhou aquele vídeo.
Todo mundo pensa assim. Todo mundo sabe disso. Mas quem é esse tal de todo
mundo? A gente cresce ouvindo que "todo mundo faz", e com isso,
sem perceber, essa entidade anônima vai ganhando uma autoridade quase divina no
nosso cotidiano. Como se fosse um conselho de sábios invisíveis que opinam
sobre o certo e o errado, o bom e o mau, o que se deve vestir, comer, pensar,
postar, sentir.
Mas
se pararmos um segundo para perguntar — com a seriedade de uma criança que
acabou de descobrir que Papai Noel é o pai usando algodão — quem exatamente
é esse todo mundo, a coisa começa a desmoronar. Porque ninguém sabe ao
certo. “Todo mundo” nunca se apresenta com CPF, nem com rosto, nem com
argumento. Ele age como uma nuvem densa de opiniões acumuladas, que paira sobre
nós com o peso da norma.
O
anonimato do consenso
Na
filosofia social, essa figura pode ser associada ao que o pensador alemão Martin
Heidegger chamou de o impessoal — o das Man em alemão.
Segundo ele, vivemos muitas vezes no modo de ser do “se faz”, “se pensa”, “se
diz”, como se nossas ações fossem conduzidas por um agente neutro e coletivo.
Heidegger não está falando de uma pessoa específica, mas de um modo de
existência em que deixamos de ser singulares para ser apenas mais um na massa
que segue o fluxo. O “todo mundo” é o das Man agindo: ele vive em nós
quando não somos nós mesmos.
É
nesse espaço indistinto que mora o conforto da aprovação. A sensação de estar
alinhado com o que “se espera” nos poupa do risco de errar sozinhos. Por isso
tanta gente se agarra a esse ente abstrato: porque pensar diferente, querer
diferente ou até ser diferente pode significar sair da sombra segura do todo
mundo e encarar a própria solidão.
Todo
mundo não cabe em todo mundo
O
problema é que esse “todo mundo” costuma excluir mais do que incluir. Ele
silencia quem discorda, quem se expressa fora do padrão, quem vive na margem.
Quando dizemos “todo mundo está fazendo”, muitas vezes estamos repetindo o que
um grupo muito específico, geralmente privilegiado ou mais visível, está
fazendo. O resto — a maioria silenciosa, invisível ou ignorada — fica de fora
da equação.
Em
termos sociológicos, podemos pensar com Pierre Bourdieu, que nos lembra
como as práticas sociais carregam distinções. Aquilo que parece ser “universal”
geralmente é o gosto de um grupo dominante apresentado como se fosse natural.
Então, o "todo mundo" é, muitas vezes, uma ficção construída a partir
da norma dominante. O que é todo mundo na zona sul de Porto Alegre pode não ser
ninguém no sertão da Bahia.
Desobedecer
o todo
Talvez
a pergunta mais filosófica seja: precisamos mesmo de um “todo mundo”?
Claro, somos seres sociais, desejamos pertencimento, somos construídos pela
linguagem do outro. Mas há uma diferença entre viver em relação e viver em
submissão. Seguir o “todo mundo” por medo de errar é uma forma sutil de
servidão.
A
desobediência criativa — como propunha Michel Foucault — pode ser uma
forma de existência mais autêntica. É no momento em que duvidamos da voz que
fala em nome de todos, que a nossa voz começa a tomar forma. E se ninguém mais
estiver dizendo o que você está dizendo, talvez seja exatamente por isso que
você precise dizer.
Conclusão
desconfortável:
Então,
da próxima vez que alguém disser “todo mundo pensa assim”, pergunte com
gentileza filosófica: todo mundo quem? Talvez essa pergunta simples já
comece a desatar o nó de muitas certezas. E quem sabe, no silêncio entre uma
resposta e outra, você encontre um espaço de liberdade — pequeno, mas genuíno —
para pensar o que ninguém está pensando ainda. E nesse instante, você deixará
de ser “todo mundo” para ser, enfim, alguém.
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