Viver entre uma coisa e outra
Estava
assistindo a Lucia Helena Galvão junto ao Instagram, ela falando sobre
“bardo”, em mais uma de suas aulas magnificas, inspirado por ela não pude
deixar de pensar e fui pesquisar mais a respeito, então vamos lá, vamos nos
aventurarmos e refletir sobre o tema.
A
palavra bardo vem do tibetano e significa literalmente "entre dois".
No budismo tibetano, ela é usada para descrever estados intermediários,
especialmente o intervalo entre a morte e o renascimento. Mas o conceito vai
muito além disso. Ele também se aplica a qualquer fase de transição — entre o
sono e a vigília, entre a vida cotidiana e a meditação, entre dois momentos
decisivos da existência.
O
Bardo Thödol, conhecido como "Livro Tibetano dos Mortos", descreve
seis tipos principais de bardo: o da vida, o dos sonhos, o da meditação, o do
momento da morte, o da realidade última e o do renascimento. São todos estados
de passagem. Em todos eles, algo velho termina, mas o novo ainda não começou.
Mas
e no nosso dia a dia? Onde está o bardo?
Ele
aparece em momentos que, à primeira vista, parecem vazios. Imagine alguém que
pediu demissão, mas ainda não sabe o que quer fazer. Ou um casal que terminou,
mas ainda mora junto, tentando resolver o que será da vida de cada um. Ou um
estudante que terminou os estudos, mas ainda não foi chamado para trabalhar.
Bardos.
Há
também o bardo emocional: quando você sente que superou uma dor, mas ainda não
encontrou alegria. Ou o bardo do envelhecimento: o corpo muda, mas a alma ainda
se ajusta. Há até o bardo das manhãs de domingo: tempo solto, em que nem o
trabalho nem o lazer se instalam direito — apenas o estar no meio.
São
esses momentos de intervalo em que não sabemos o que fazer com o tempo. Parece
que estamos suspensos, como se a vida estivesse pausada, esperando alguma coisa
acontecer. Mas, na verdade, estamos em transformação.
O
filósofo grego Heráclito dizia que tudo flui. O bardo é exatamente isso:
o fluxo em que deixamos de ser algo, mas ainda não sabemos o que seremos.
Atravessar um bardo é como caminhar num corredor sem portas visíveis — mas
onde, sem perceber, estamos sendo moldados.
A
tradição tibetana não vê o bardo como um erro ou um castigo. Pelo contrário: é
ali que a consciência se revela. É ali que o medo surge, mas também onde a
sabedoria pode florescer. Os bardos exigem escuta, silêncio e presença.
Quem
também refletiu profundamente sobre os estados intermediários da alma foi Helena
Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica. Para ela, o ser
humano é composto por múltiplos níveis — físico, emocional, mental e espiritual
— que atravessam ciclos contínuos de transformação. Em A Doutrina Secreta,
Blavatsky afirma:
“A
natureza é um movimento rítmico de atividade e repouso. Tudo na vida é cíclico,
e entre cada ação manifesta há um intervalo oculto, um período de assimilação
invisível aos olhos físicos, mas essencial para o desenvolvimento espiritual.”
Essa
pausa invisível — esse “intervalo oculto” — é, na essência, o que os tibetanos
chamam de bardo. Não é vazio: é gestação. Não é perda: é transformação. Para
Blavatsky, a alma aprende mais nos silêncios do que nos ruídos, e esses espaços
entre fases da vida são tão importantes quanto os acontecimentos que os cercam.
O
pensador sul-coreano Byung-Chul Han também toca nesse ponto, embora por
outra via. Ele fala da aceleração do tempo e da nossa dificuldade atual de
viver pausas. Para ele, nossa era digital tornou tudo instantâneo, mas
superficial. O bardo, nesse contexto, aparece como uma resistência: o direito
de estar em suspensão, de não ter respostas imediatas, de não preencher todo o
silêncio com ruído.
Numa
cultura que exige que saibamos sempre para onde vamos, o bardo é um lembrete:
não saber também é caminho. Viver entre uma coisa e outra pode ser
desconfortável, mas é nesse espaço que amadurecemos, escutamos a nós mesmos e
percebemos que a vida continua mesmo quando parece parada.
Da
próxima vez que estiver num desses intervalos — sem rumo, sem chão, sem pressa
— lembre-se: isso também é viver. O bardo não é o fim nem o começo. É o meio
onde tudo se transforma.
“A
borboleta não se apressa para sair do casulo. Ela espera. No escuro. No
silêncio. Até que tenha asas.”
—
sabedoria popular
Nenhum comentário:
Postar um comentário