Pesquisar este blog

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Interseccionalidade

 “As linhas do mundo não são retas”

Tem dias em que a gente sente que carrega um peso que os outros não percebem. A mulher negra que atravessa o centro da cidade com o uniforme de doméstica é confundida com “alguém perdida”. O jovem trans negro da periferia nem chega a ser entrevistado para o emprego que dizia "procurar diversidade". A trabalhadora rural indígena que cuida da própria família e ainda sustenta parte da aldeia raramente é vista como intelectual. Essas experiências não cabem em uma única caixa explicativa. Racismo? Sim. Machismo? Sim. Desigualdade econômica? Também. Mas o que realmente ocorre é um entrelaçamento de sistemas de opressão. Uma sobreposição.

Esse emaranhado tem nome: interseccionalidade. E mais do que um conceito, é uma chave de leitura do mundo — e um convite para rever como enxergamos as desigualdades.

 

O que está em jogo: nem só classe, nem só raça, nem só gênero

O termo foi cunhado pela jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw em 1989, mas sua origem é mais profunda: ela ecoa a voz de mulheres negras que sempre denunciaram que as lutas não podiam ser segmentadas. No Brasil, Lélia Gonzalez foi pioneira em revelar essa multiplicidade. Ao falar da “amefricanidade”, ela rompeu com a ideia de que o pensamento negro deveria ser lido a partir de uma ótica eurocentrada. Para ela, o Brasil só pode ser entendido ao encarar a articulação entre racismo, sexismo e elitismo, tudo isso moldado por uma estrutura colonial nunca desfeita.

Como Lélia afirmava, não se trata de “acrescentar” gênero à questão racial, ou “incluir” a negritude ao feminismo branco, mas de reconhecer que a experiência vivida da mulher negra é fundacional para compreender o Brasil.

Sueli Carneiro, filósofa e ativista, vai mais longe: a sociedade não apenas marginaliza as identidades interseccionadas, mas constrói sua própria ideia de humanidade a partir da exclusão dessas identidades. Para ela, o racismo é um sistema que produz inferiorizações simbólicas e materiais, e que só pode ser combatido se assumirmos uma postura crítica diante da normatividade branca, masculina e burguesa que estrutura o pensamento ocidental.

 

Uma lente para ver o invisível

A interseccionalidade não é um simples empilhamento de opressões, mas uma maneira de perceber como essas opressões se reconfiguram e se reforçam mutuamente. No cotidiano, ela nos ajuda a entender por que as políticas públicas falham quando tratam mulheres como um grupo homogêneo, ou quando se fala de "pobreza" sem considerar a cor da pele dos mais pobres.

Djamila Ribeiro, filósofa contemporânea, popularizou esse debate no Brasil trazendo o conceito de “lugar de fala” — não como silenciamento do outro, mas como uma exigência de escuta e legitimidade das vozes que falam a partir das margens. A interseccionalidade, nesse sentido, não é só uma teoria: é uma prática de escuta, de justiça e de redistribuição do olhar.

 

Filosofia, Sociologia e o desafio da complexidade

Filósofos como Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao proporem a ideia de rizoma, sem hierarquias fixas e com múltiplas conexões, ajudam a pensar a interseccionalidade como uma estrutura fluida, viva, onde as forças se encontram de maneiras não previsíveis. Isso se opõe às classificações duras da modernidade ocidental, que preferia reduzir os sujeitos a uma única identidade dominante.

Na sociologia, essa virada exige superar os modelos totalizantes. Não basta mais pensar apenas em classe social como chave de análise, como em Marx, ou apenas em funcionalidade social, como em Durkheim. É preciso reconhecer que as subjetividades importam — e que a desigualdade não é só uma questão econômica, mas também simbólica, afetiva e histórica.

 

Por que importa?

Adotar a interseccionalidade como prática política e intelectual é romper com as soluções fáceis. Não há resposta única. Há escuta, desconstrução e reconstrução. Em vez de perguntar "qual luta vem primeiro?", a interseccionalidade nos obriga a construir alianças que levem em conta quem está mais vulnerável — e por quê.

Ela nos alerta para o fato de que a mesma política de cotas, por exemplo, que beneficia jovens negros da periferia, pode continuar excluindo mulheres trans negras. Que a mesma política de empoderamento feminino pode seguir beneficiando majoritariamente mulheres brancas de classe média. Que nem toda "representatividade" significa mudança estrutural.

 

Sair da linha reta

No fim, o que a interseccionalidade nos propõe é um novo modo de andar no mundo. Menos linha reta, mais cruzamento. Menos centro, mais borda. Menos universalidade abstrata, mais humanidade concreta. Como disse Lélia Gonzalez, "não se trata de falar por, mas de criar espaços para que cada um fale de si e do mundo a partir do lugar onde está".

E talvez seja isso que nos falta para um novo projeto de sociedade: enxergar quem foi historicamente colocado nas margens como centro legítimo de pensamento, de política e de transformação.

Nenhum comentário:

Postar um comentário