“As linhas do mundo não são retas”
Tem
dias em que a gente sente que carrega um peso que os outros não percebem. A
mulher negra que atravessa o centro da cidade com o uniforme de doméstica é
confundida com “alguém perdida”. O jovem trans negro da periferia nem chega a
ser entrevistado para o emprego que dizia "procurar diversidade". A
trabalhadora rural indígena que cuida da própria família e ainda sustenta parte
da aldeia raramente é vista como intelectual. Essas experiências não cabem em
uma única caixa explicativa. Racismo? Sim. Machismo? Sim. Desigualdade
econômica? Também. Mas o que realmente ocorre é um entrelaçamento de
sistemas de opressão. Uma sobreposição.
Esse
emaranhado tem nome: interseccionalidade. E mais do que um conceito, é
uma chave de leitura do mundo — e um convite para rever como enxergamos as
desigualdades.
O
que está em jogo: nem só classe, nem só raça, nem só gênero
O
termo foi cunhado pela jurista afro-americana Kimberlé Crenshaw em 1989,
mas sua origem é mais profunda: ela ecoa a voz de mulheres negras que sempre
denunciaram que as lutas não podiam ser segmentadas. No Brasil, Lélia
Gonzalez foi pioneira em revelar essa multiplicidade. Ao falar da
“amefricanidade”, ela rompeu com a ideia de que o pensamento negro deveria ser
lido a partir de uma ótica eurocentrada. Para ela, o Brasil só pode ser
entendido ao encarar a articulação entre racismo, sexismo e elitismo,
tudo isso moldado por uma estrutura colonial nunca desfeita.
Como
Lélia afirmava, não se trata de “acrescentar” gênero à questão racial, ou
“incluir” a negritude ao feminismo branco, mas de reconhecer que a
experiência vivida da mulher negra é fundacional para compreender o Brasil.
Já
Sueli Carneiro, filósofa e ativista, vai mais longe: a sociedade não
apenas marginaliza as identidades interseccionadas, mas constrói sua própria
ideia de humanidade a partir da exclusão dessas identidades. Para ela, o
racismo é um sistema que produz inferiorizações simbólicas e materiais, e que
só pode ser combatido se assumirmos uma postura crítica diante da normatividade
branca, masculina e burguesa que estrutura o pensamento ocidental.
Uma
lente para ver o invisível
A
interseccionalidade não é um simples empilhamento de opressões, mas uma
maneira de perceber como essas opressões se reconfiguram e se reforçam
mutuamente. No cotidiano, ela nos ajuda a entender por que as políticas
públicas falham quando tratam mulheres como um grupo homogêneo, ou quando se
fala de "pobreza" sem considerar a cor da pele dos mais pobres.
Djamila
Ribeiro, filósofa contemporânea, popularizou esse debate no
Brasil trazendo o conceito de “lugar de fala” — não como silenciamento do
outro, mas como uma exigência de escuta e legitimidade das vozes que falam a
partir das margens. A interseccionalidade, nesse sentido, não é só uma teoria:
é uma prática de escuta, de justiça e de redistribuição do olhar.
Filosofia, Sociologia e o desafio da complexidade
Filósofos
como Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao proporem a ideia de rizoma, sem
hierarquias fixas e com múltiplas conexões, ajudam a pensar a
interseccionalidade como uma estrutura fluida, viva, onde as forças se
encontram de maneiras não previsíveis. Isso se opõe às classificações duras da
modernidade ocidental, que preferia reduzir os sujeitos a uma única identidade
dominante.
Na
sociologia, essa virada exige superar os modelos totalizantes. Não basta
mais pensar apenas em classe social como chave de análise, como em Marx,
ou apenas em funcionalidade social, como em Durkheim. É preciso
reconhecer que as subjetividades importam — e que a desigualdade não é
só uma questão econômica, mas também simbólica, afetiva e histórica.
Por
que importa?
Adotar
a interseccionalidade como prática política e intelectual é romper com as
soluções fáceis. Não há resposta única. Há escuta, desconstrução e
reconstrução. Em vez de perguntar "qual luta vem primeiro?", a
interseccionalidade nos obriga a construir alianças que levem em conta quem
está mais vulnerável — e por quê.
Ela
nos alerta para o fato de que a mesma política de cotas, por exemplo, que
beneficia jovens negros da periferia, pode continuar excluindo mulheres trans
negras. Que a mesma política de empoderamento feminino pode seguir beneficiando
majoritariamente mulheres brancas de classe média. Que nem toda
"representatividade" significa mudança estrutural.
Sair
da linha reta
No
fim, o que a interseccionalidade nos propõe é um novo modo de andar no mundo.
Menos linha reta, mais cruzamento. Menos centro, mais borda. Menos
universalidade abstrata, mais humanidade concreta. Como disse Lélia Gonzalez,
"não se trata de falar por, mas de criar espaços para que cada um fale de
si e do mundo a partir do lugar onde está".
E
talvez seja isso que nos falta para um novo projeto de sociedade: enxergar quem
foi historicamente colocado nas margens como centro legítimo de pensamento,
de política e de transformação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário