Leituras Críticas do Sujeito Moderno
Tem dias em que a gente se olha no espelho e não se reconhece. Sabe quem está
ali — lembra o nome, a rotina, as dívidas — mas parece que faltou alguma coisa
no meio do caminho entre ser e estar. A sensação de estranhamento diante de si
mesmo é mais comum do que parece. Não é apenas uma crise pessoal ou uma fase
esquisita: é um sintoma de algo mais profundo. Vivemos cercados de vozes que
nos dizem o que fazer, como agir, quem ser — e, ao mesmo tempo, perdemos o
contato com a voz interna, com aquele silêncio denso onde habita o que
realmente somos. É aí que entra a ideia de uma hermenêutica da alienação,
uma tentativa de interpretar não só o mundo, mas esse sujeito moderno que se
desencontra de si enquanto se conecta com tudo.
Entre
o sujeito fragmentado e a linguagem que o constrói
A
hermenêutica, como arte da interpretação, sempre teve como objetivo desvelar
sentidos ocultos — de textos, símbolos, tradições. Mas no mundo moderno, o
próprio sujeito se tornou um texto esfacelado. O “eu” já não é unidade, mas
campo de disputa: entre desejo e dever, entre consumo e essência, entre o que
se quer e o que se espera de nós. A alienação, nesse contexto, não é apenas
econômica (como pensou Marx), mas existencial, simbólica, espiritual.
O
sujeito moderno, moldado por estruturas que o ultrapassam — capitalismo, mídia,
redes sociais, linguagem técnica — se vê apartado de sua potência criadora. Não
pensa mais em seus próprios termos, mas dentro de narrativas oferecidas por
algoritmos ou padrões de mercado. A alienação contemporânea é sutil, polida e
sedutora: ela se camufla como liberdade. O “ser você mesmo” virou slogan de
marca. Assim, a própria autenticidade é vendida como produto.
A
hermenêutica da alienação propõe, então, um movimento contrário: interpretar os
sinais de nosso afastamento. Por que repetimos ideias que não são nossas? Por
que agimos contra nossos valores mais íntimos? Por que o sujeito moderno,
aparentemente livre, sente-se preso em todas as direções?
Nietzsche
já anunciava o problema ao falar do niilismo: quando os grandes sentidos
colapsam, sobra um vazio disfarçado de pluralidade. O eu moderno se multiplica,
sim, mas cada versão é mais distante da origem. A leitura crítica desse sujeito
exige uma escuta ativa, quase arqueológica, das camadas que o tempo, a cultura
e a linguagem depositaram sobre a existência.
A
linguagem como prisão e possibilidade
Paul
Ricoeur, ao pensar a hermenêutica do sujeito, lembra que a
linguagem não apenas descreve o mundo, ela o configura. Foucault, por outro
lado, nos alertou para o modo como os discursos moldam comportamentos e
identidades. A alienação do sujeito moderno está também na gramática que
internaliza: falamos e pensamos com estruturas que não escolhemos, muitas vezes
sem saber que há alternativas. A crítica precisa ser também uma reinterpretação
da linguagem.
Ler
o sujeito moderno é aprender a desconfiar da normalidade — de suas escolhas
“livres”, de sua produtividade exaltada, de seus amores performáticos. A
hermenêutica da alienação se torna, assim, uma leitura ética: ela não busca
apenas compreender, mas transformar. Não basta saber que estamos alienados — é
preciso encontrar fissuras no discurso para começar a voltar.
A
escuta como resistência
Em
um mundo de excesso de informação, silenciar para ouvir a si mesmo pode ser um
ato revolucionário. A hermenêutica da alienação não é só uma ferramenta
acadêmica, mas um gesto cotidiano: perguntar-se “quem está falando por mim
agora?”. Talvez essa seja a pergunta mais honesta do nosso tempo.
Ler
criticamente o sujeito moderno é dar a ele a chance de se reescrever. A
liberdade, ao fim, não está em fazer o que se quer, mas em querer o que se
compreendeu. E compreender exige tempo, escuta e coragem de desenterrar o que
há muito foi enterrado sob camadas de distração.
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