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quinta-feira, 17 de julho de 2025

Hermenêutica da Alienação

 Leituras Críticas do Sujeito Moderno


Tem dias em que a gente se olha no espelho e não se reconhece. Sabe quem está ali — lembra o nome, a rotina, as dívidas — mas parece que faltou alguma coisa no meio do caminho entre ser e estar. A sensação de estranhamento diante de si mesmo é mais comum do que parece. Não é apenas uma crise pessoal ou uma fase esquisita: é um sintoma de algo mais profundo. Vivemos cercados de vozes que nos dizem o que fazer, como agir, quem ser — e, ao mesmo tempo, perdemos o contato com a voz interna, com aquele silêncio denso onde habita o que realmente somos. É aí que entra a ideia de uma hermenêutica da alienação, uma tentativa de interpretar não só o mundo, mas esse sujeito moderno que se desencontra de si enquanto se conecta com tudo.

 

Entre o sujeito fragmentado e a linguagem que o constrói

A hermenêutica, como arte da interpretação, sempre teve como objetivo desvelar sentidos ocultos — de textos, símbolos, tradições. Mas no mundo moderno, o próprio sujeito se tornou um texto esfacelado. O “eu” já não é unidade, mas campo de disputa: entre desejo e dever, entre consumo e essência, entre o que se quer e o que se espera de nós. A alienação, nesse contexto, não é apenas econômica (como pensou Marx), mas existencial, simbólica, espiritual.

O sujeito moderno, moldado por estruturas que o ultrapassam — capitalismo, mídia, redes sociais, linguagem técnica — se vê apartado de sua potência criadora. Não pensa mais em seus próprios termos, mas dentro de narrativas oferecidas por algoritmos ou padrões de mercado. A alienação contemporânea é sutil, polida e sedutora: ela se camufla como liberdade. O “ser você mesmo” virou slogan de marca. Assim, a própria autenticidade é vendida como produto.

A hermenêutica da alienação propõe, então, um movimento contrário: interpretar os sinais de nosso afastamento. Por que repetimos ideias que não são nossas? Por que agimos contra nossos valores mais íntimos? Por que o sujeito moderno, aparentemente livre, sente-se preso em todas as direções?

Nietzsche já anunciava o problema ao falar do niilismo: quando os grandes sentidos colapsam, sobra um vazio disfarçado de pluralidade. O eu moderno se multiplica, sim, mas cada versão é mais distante da origem. A leitura crítica desse sujeito exige uma escuta ativa, quase arqueológica, das camadas que o tempo, a cultura e a linguagem depositaram sobre a existência.

 

A linguagem como prisão e possibilidade

Paul Ricoeur, ao pensar a hermenêutica do sujeito, lembra que a linguagem não apenas descreve o mundo, ela o configura. Foucault, por outro lado, nos alertou para o modo como os discursos moldam comportamentos e identidades. A alienação do sujeito moderno está também na gramática que internaliza: falamos e pensamos com estruturas que não escolhemos, muitas vezes sem saber que há alternativas. A crítica precisa ser também uma reinterpretação da linguagem.

Ler o sujeito moderno é aprender a desconfiar da normalidade — de suas escolhas “livres”, de sua produtividade exaltada, de seus amores performáticos. A hermenêutica da alienação se torna, assim, uma leitura ética: ela não busca apenas compreender, mas transformar. Não basta saber que estamos alienados — é preciso encontrar fissuras no discurso para começar a voltar.

 

A escuta como resistência

Em um mundo de excesso de informação, silenciar para ouvir a si mesmo pode ser um ato revolucionário. A hermenêutica da alienação não é só uma ferramenta acadêmica, mas um gesto cotidiano: perguntar-se “quem está falando por mim agora?”. Talvez essa seja a pergunta mais honesta do nosso tempo.

Ler criticamente o sujeito moderno é dar a ele a chance de se reescrever. A liberdade, ao fim, não está em fazer o que se quer, mas em querer o que se compreendeu. E compreender exige tempo, escuta e coragem de desenterrar o que há muito foi enterrado sob camadas de distração.

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