Do habitus ao imaginário, trânsitos simbólicos na vida cotidiana
Dizem
que a realidade está aí, basta abrir os olhos. Mas o que acontece quando cada
um vê uma coisa diferente com os mesmos olhos abertos? Uma conversa no ônibus,
um post no Instagram, um gesto atravessado numa reunião de trabalho — todos
esses episódios revelam que a realidade, tal como a experimentamos, está longe
de ser uma rocha sólida. Parece mais uma superfície maleável, moldada por
nossos hábitos, desejos e imagens mentais. Há algo que escapa. Algo que
chamamos de “real”, mas que insiste em se esconder atrás de representações.
Talvez estejamos todos tentando tocar o mundo com luvas simbólicas — e, mesmo
assim, juramos que sentimos sua textura.
Este
ensaio percorre uma trilha sinuosa entre sociologia e filosofia: da noção de habitus,
formulada por Pierre Bourdieu, à lógica do imaginário como estruturante
das experiências cotidianas. No meio do caminho, tropeçamos nas aporias do real
— contradições, desvios e vazios que desafiam qualquer pretensão de fixar o
mundo em significados unívocos. Proponho aqui um olhar inovador sobre os
trânsitos simbólicos que constituem a vida cotidiana, suas ambiguidades e
potências criativas.
Habitus:
o corpo socializado
O
habitus é a herança invisível que carregamos no corpo. Trata-se de um
conjunto de disposições adquiridas, de esquemas de percepção e ação que
estruturam nosso modo de estar no mundo sem que pensemos nele. Bourdieu
o define como uma “estrutura estruturante estruturada” — fórmula que, embora
intrincada, dá conta do paradoxo de que somos ao mesmo tempo produto e
produtores da realidade social.
Nossos
gostos, posturas e modos de falar não são apenas individuais, mas refletem o
lugar que ocupamos nas hierarquias sociais. Um morador da periferia e um
frequentador da ópera não percebem o mundo da mesma maneira — não apenas porque
veem coisas diferentes, mas porque aprendem a ver diferentemente. A
realidade, então, se apresenta conforme os óculos que o habitus nos dá.
Mas será que esses óculos são suficientes para enxergar o mundo?
Imaginário:
o real como tecido de imagens
Ao
lado do habitus, o imaginário aparece como outra dimensão essencial da
experiência do real. Gilbert Durand, Edgar Morin e Cornelius
Castoriadis são pensadores que situam o imaginário não como ilusão, mas
como uma instância organizadora da vida social. Imaginamos antes mesmo de
racionalizar. Vemos o mundo atravessado por símbolos, mitos e arquétipos —
sejam eles religiosos, midiáticos ou afetivos.
No
mundo contemporâneo, onde a comunicação é instantânea e as imagens circulam com
voracidade, o real se torna cada vez mais saturado de representações. A selfie,
o meme, o story, o avatar: todos esses dispositivos não apenas representam o
sujeito, mas constituem o modo como ele se vê e deseja ser visto. O real
se desfaz em camadas imagéticas, e o que chamávamos de realidade objetiva
torna-se, no fundo, uma arena de disputas simbólicas.
Aporias
do real: entre o vivido e o representado
Aqui
surgem as aporias: impasses entre o que se vive e o que se mostra, entre o que
se sente e o que se pode dizer. Na vida cotidiana, há um vaivém constante entre
o gesto espontâneo e a cena encenada. O sujeito contemporâneo se move entre
diversos papéis: pai, profissional, cidadão, amante, usuário de redes sociais.
Em cada espaço, opera um trânsito simbólico que exige novas máscaras, novas
linguagens, novos códigos.
Mas
o problema emerge quando as fronteiras se esgarçam: quando o imaginário se
sobrepõe ao vivido, ou quando o habitus torna-se prisão. Há quem se
perca em performances; há quem se sinta irreal em sua própria pele. As aporias
do real residem justamente nesses momentos de desencontro — quando o simbólico
não dá conta do vivido, e quando o vivido se torna irrepresentável.
Trânsitos
simbólicos: reinvenções do cotidiano
Apesar
dos impasses, é nesse trânsito que mora a potência criativa da vida social.
Cada desvio, cada tropeço no automatismo do habitus, abre espaço para a
reinvenção. O cotidiano é fértil em pequenas rupturas simbólicas: uma gíria
nova que subverte o código, um gesto de afeto onde só se esperava formalidade,
um corpo que resiste a normatividades.
Esses
momentos de dissonância nos lembram que o real não é dado, mas constantemente
produzido — e que podemos, sim, reconfigurá-lo. O filósofo francês Michel de
Certeau falava do “uso tático” do cotidiano, como forma de resistência e
criação. Assim, viver passa a ser mais do que reproduzir o mundo: é interferir
nele, ainda que simbolicamente, a cada passo.
O
real como dobra
O
real, então, não é uma linha reta, mas uma dobra — uma dobra entre o habitus
que nos molda, o imaginário que nos inspira e os símbolos que manipulamos no
jogo social. Viver é transitar por essas dobras, ora confiando nas estruturas,
ora desmontando-as. O desafio contemporâneo é perceber que a realidade não é só
aquilo que nos cerca, mas também aquilo que somos capazes de imaginar — e
simbolizar.
Na
próxima conversa de ônibus ou no trem, talvez você repare não apenas no que
está sendo dito, mas no modo como o real está sendo construído ali, naquele
instante. E talvez descubra que a verdade do mundo não está naquilo que vemos,
mas na maneira como conseguimos dizer o que, no fundo, ninguém viu ainda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário