Uma Reflexão sobre o Impessoal em Heidegger
Sabe
aquele momento em que a gente está numa conversa, mas parece que quem fala é
uma voz que não tem rosto, nem nome, uma voz que fala “por si só”, como se
viesse do ar, do vento, do vácuo, ou de algum lugar além de qualquer pessoa? Às
vezes, a gente sente que o que importa não é quem está falando, mas o que está
sendo dito — como se o sentido existisse num espaço neutro, impessoal, onde
todo mundo pode se encontrar. Essa sensação pode parecer meio estranha, até
meio fria, mas para o filósofo alemão Martin Heidegger, esse “impessoal”
tem um papel fundamental para entender a existência.
Heidegger
e o Impessoal: O “Da-Sein” para além do Eu
Heidegger
não é fácil de ler — e nem quis ser. Ele propôs uma revolução no modo de pensar
o ser humano e sua existência no mundo. Em vez de falar do “eu” como uma
entidade fechada, ele preferiu um conceito que abre espaço para algo que é ao
mesmo tempo “aqui” e “lá”, “alguém” e “ninguém”: o Da-Sein — o “ser-aí”.
O
Da-Sein não é uma pessoa, um sujeito com características fixas. Ele é, antes, a
existência que sempre está lançada num mundo comum, compartilhado, onde a
individualidade só aparece como um momento dentro de algo mais amplo e
impessoal. A existência humana, para Heidegger, é primeiramente “ser-no-mundo”,
e esse mundo é um campo de sentido aberto, que não pertence a ninguém, mas que
é vivido por todos.
Assim,
o impessoal não é uma negação do sujeito, mas a condição para que o sujeito
apareça. Antes que eu diga “eu”, já existe um “aqui” comum, uma linguagem
comum, um modo comum de estar no mundo, um modo impessoal onde a existência
humana se desdobra.
O
Impessoal como Condição de Possibilidade da Autenticidade
Parece
contraditório, mas para Heidegger, para eu ser realmente eu, preciso primeiro
me reconhecer como parte de algo impessoal, que é o “mundo”, a “comunidade” da
linguagem, do tempo e do espaço. O impessoal é a base, o fundo onde minha
individualidade pode emergir.
Por
exemplo, quando dizemos “o homem é mortal”, não estamos falando de um indivíduo
em particular, mas de uma verdade impessoal que vale para todos os seres
humanos. Essa “verdade impessoal” revela um aspecto essencial da existência, a
finitude, que nenhum “eu” pode escapar.
Quando
vivemos de modo autêntico — como Heidegger chama —, aceitamos essa condição
impessoal: reconhecemos que não somos donos do mundo, que somos “jogados” nele,
e que nossa vida é uma “tarefa” que emerge dentro dessa impessoalidade
existencial.
A
Voz do Impessoal na Linguagem e no Tempo
Outro
aspecto fascinante é o modo como Heidegger entende a linguagem como uma
manifestação do impessoal. A linguagem não é propriedade privada, ela “fala”
antes mesmo de falarmos. É por meio da linguagem que o impessoal se revela e
nos convoca para o ser.
Também
o tempo, para Heidegger, não é uma sequência objetiva de instantes medidos pelo
relógio, mas uma estrutura impessoal que sustenta toda existência. O passado, o
presente e o futuro não são “meus”, são modos de ser do tempo que todos
partilhamos.
Uma
Perspectiva Contemporânea: O Impessoal e a Era Digital
Para
finalizar essa reflexão, vamos dar um passo para o hoje: o impessoal de
Heidegger tem ecos surpreendentes na era digital. Pense nas redes sociais, nos
fóruns, nas conversas em grupo onde a autoria se dilui, onde as ideias circulam
de forma quase impessoal — as vozes se confundem, ninguém é dono da verdade,
mas todos participam da construção do sentido.
Talvez
a experiência contemporânea da internet nos ajude a entender, na prática, o que
Heidegger queria dizer com o impessoal como condição da existência: estamos
todos conectados num mundo comum, onde a individualidade não desaparece, mas se
manifesta dentro de uma rede impessoal de relações, linguagens e tempos
compartilhados.
O
impessoal, para Heidegger, não é um vazio, nem uma perda do eu. É o espaço
primordial onde o ser humano aparece, o campo onde a existência ganha sentido e
autenticidade. Entender o impessoal é, assim, entender que viver é, antes de
tudo, estar inserido num mundo que fala, convoca e sustenta a vida humana —
muito além do “eu” e do “meu”.
E
você? Já sentiu essa voz impessoal te chamando para além do seu nome?
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