Ensaio filosófico com comentário de Baruch Spinoza
Tem
gente que nasce com o botão da concordância emperrado. A reunião de condomínio
decide, ele discorda. O grupo de amigos entra em consenso, ele puxa assunto
contrário. A turma na faculdade aplaude, ele cruza os braços. Às vezes parece
só teimosia, birra ou vontade de aparecer — mas, no fundo, há uma força mais
estranha e mais antiga agindo ali: a força do herege. E não falo de religião
apenas. Ser herege é um modo de estar no mundo. Um modo de não se deixar levar
pela maré da maioria, de pagar o preço da solidão em troca da liberdade de
pensar por conta própria.
O
herege não é o rebelde que se opõe por impulso, nem o crítico de plantão que se
alimenta de negatividade. O herege verdadeiro quer compreender, não seguir. E é
por isso que incomoda. Ele não destrói dogmas por diversão — mas porque os
dogmas, para ele, soam como grades. Onde a maioria vê conforto, ele vê cárcere.
Onde a maioria vê verdade, ele vê hábito. Onde a maioria se ajoelha, ele faz
perguntas.
Nas
relações pessoais, o herege é o que não ri da piada preconceituosa no
churrasco. No trabalho, é o que recusa uma ordem que contraria a ética. Na
família, é o que escolhe um caminho de vida incompreensível para todos. Ele
desorganiza, desestrutura, mas também oxigena. É o que aponta rachaduras num
edifício que todos fingiam estar inteiro.
O
herege é muitas vezes confundido com o vilão da história. Mas em várias
narrativas, se olharmos com mais cuidado, ele é só alguém que viu antes — e
pagou por isso. Não é à toa que muitos mártires começaram como hereges,
inclusive os fundadores das religiões que hoje os condenariam. Só é possível
fundar o novo porque alguém foi queimado por pensar diferente.
Baruch
Spinoza, filósofo do século XVII, talvez tenha sido um dos maiores hereges da
história — e um dos mais elegantes. Expulso da comunidade judaica de Amsterdã
por suas ideias radicais sobre Deus, a natureza e a liberdade, Spinoza
acreditava que “a liberdade de filosofar não apenas é compatível com a
piedade e com a ordem pública, como é absolutamente necessária para ambas”.
Em outras palavras, o herege não destrói o mundo — ele impede que o mundo
apodreça de dentro para fora.
Para
Spinoza, Deus não é um velho nos céus ditando regras, mas a própria natureza em
sua infinita e impessoal potência de existir. E viver de forma herege, nesse
sentido, é viver de acordo com a própria razão — não com os medos ou tradições
alheias.
Num
tempo em que tudo parece exigir alinhamento, ser herege pode ser um ato de
coragem amorosa. Amor à verdade, à liberdade e à própria consciência. Talvez
seja hora de olhar para os hereges do nosso cotidiano com menos desconfiança e
mais atenção. Pode ser que eles estejam apenas tentando nos lembrar de algo que
esquecemos no fundo de nós mesmos: que pensar por si mesmo ainda é uma das
formas mais sublimes de existir.
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