Máscaras de escravidão: Quando a folga vira coleira
Sabe
aquele momento em que finalmente chega o fim de semana, e a gente pensa: “agora
sim, vou descansar”? Mas, em vez de repouso, vem uma lista invisível de coisas
que precisamos fazer para “aproveitar o tempo livre”: maratonar séries,
visitar o novo restaurante da moda, comprar algo em promoção, postar uma foto
sorridente com filtro. Parece descanso, mas será mesmo? Ou será que colocamos
máscaras de lazer que escondem novas formas de cansaço — e até de escravidão?
Há
também o fenômeno curioso da multidão que se move em bloco, mesmo quando
acredita estar agindo por vontade própria. Como gado em pastagem, todos vão
onde todos vão, como se o simples fato de muitos estarem fazendo algo já fosse
um selo de autenticidade. O novo lugar “instagramável”, o festival do momento,
o destino turístico da vez — nada disso é escolhido por real desejo, mas por
contágio. A mesmice se disfarça de tendência, e o medo de ficar de fora empurra
cada um para dentro da trilha marcada. Romper com isso exige não só coragem,
mas uma vontade rara de andar em sentido contrário, de suportar o incômodo de
pensar o próprio caminho.
Liberdade
embalada a vácuo
Ao
longo da história, os momentos de lazer foram associados à liberdade. Os gregos
antigos, por exemplo, valorizavam o ócio criativo — o tempo livre para
contemplar, refletir, filosofar. Hoje, porém, o lazer se mistura com a lógica
do mercado. O que chamamos de “tempo livre” muitas vezes é apenas o tempo em
que não estamos produzindo diretamente, mas continuamos girando a engrenagem econômica:
consumimos conteúdos, compramos experiências, alugamos sensações.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han chama isso de “sociedade do
desempenho”, em que até o prazer precisa ser eficiente. A academia vira palco
de sofrimento voluntário; o turismo, um check-list apressado; os hobbies,
vitrines de produtividade. Somos livres para escolher — contanto que sigamos os
caminhos traçados pelo algoritmo, pelo marketing, pela necessidade de sermos
vistos.
Lazer
como distração, consumo como alívio
Essa
dinâmica cria uma espécie de dopamina social: cada compra, cada passeio, cada
like nos dá uma breve euforia que logo se esgota. Como numa dependência,
buscamos de novo. O lazer, em vez de nos renovar, nos anestesia. Não sentimos o
tempo passar, mas ele escorre — e a vida vai ficando para depois.
Pior:
quando estamos exaustos, recorremos ao consumo como se fosse cura. Um sapato
novo para compensar o estresse. Um filme bobo para esquecer o vazio. Um
aplicativo de entrega para evitar pensar. Tudo rápido, prático e...
superficial. A escravidão aqui é sutil: não há correntes visíveis, apenas uma
constante fuga de si.
As
máscaras da liberdade
O
mais perverso é que tudo parece escolha. Afinal, ninguém nos obriga a
gastar o sábado no shopping ou as férias em um resort com wi-fi. Mas será que
estamos realmente escolhendo? Ou apenas reproduzindo desejos que nem sabemos de
onde vieram?
O
filósofo francês Gilles Deleuze dizia que o capitalismo não reprime os
desejos — ele os fabrica. Assim, mesmo quando acreditamos estar nos libertando
da rotina, podemos estar apenas obedecendo a outras rotinas, mais sofisticadas
e camufladas.
O
lazer vira máscara: atrás do riso está o tédio, atrás da selfie está a solidão,
atrás da compra está a angústia.
Desmascarar-se
para viver
Talvez
o verdadeiro lazer — aquele que liberta — seja o que não se pode vender nem
programar. Uma conversa sem pressa. Um silêncio sem culpa. Uma caminhada sem
destino. Atos que não rendem conteúdo nem curtidas, mas nos reconectam com a
própria existência.
Repensar
o consumo e os lazeres não significa negá-los, mas desmascará-los. Olhar para
eles sem a maquiagem da publicidade, sem a ansiedade da performance. E, quem
sabe, redescobrir que o tempo livre pode ser mesmo nosso — quando deixamos de
obedecer à lógica de que tudo precisa valer a pena.
A
escravidão mais difícil de romper
A
escravidão mais profunda é aquela que se apresenta como liberdade. E o lazer,
quando capturado pelo consumo, vira disfarce de um sistema que exige
produtividade até no descanso. Libertar-se disso é tarefa difícil — mas
necessária, se quisermos não apenas sobreviver, mas viver.
Como
dizia Nietzsche, “há mais ídolos do que realidades no mundo”. Talvez o
lazer moderno seja um desses ídolos. E só ao quebrá-lo, podemos, enfim,
descansar. De verdade.
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