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quarta-feira, 16 de julho de 2025

O Teatro Invisível

Triângulo de Karpman

Às vezes a gente sai de uma conversa se sentindo esvaziado, irritado ou com uma estranha sensação de que entrou num enredo que não era bem nosso. Parece que, sem perceber, caímos numa peça de teatro que já estava em cartaz há tempos — e tomamos um papel que alguém esperava que assumíssemos. Nesse palco silencioso, três personagens dominam o roteiro: a Vítima, o Salvador e o Perseguidor. É o Triângulo de Karpman — e quase todo mundo já atuou nele, mesmo sem saber.

Essa estrutura, apesar de parecer só mais uma teoria psicológica, revela um drama humano profundo: nossa dificuldade em nos relacionarmos de forma autêntica, sem manipulação, sem culpa, sem dependência. E, talvez, sem medo.

 

Psicologia: jogos que sustentam vínculos doentios

Stephen Karpman, discípulo da Análise Transacional, percebeu que muitos conflitos emocionais seguem um padrão repetitivo. Um jogo psicológico em que ninguém realmente vence, mas todos têm uma função simbólica: a Vítima, que atrai atenção; o Salvador, que busca reconhecimento através da ajuda; e o Perseguidor, que tenta impor controle.

Do ponto de vista psicológico, o triângulo não é só uma descrição de comportamentos, mas uma armadilha de identidade. A pessoa se agarra ao papel para se sentir alguém — mesmo que isso custe paz, liberdade ou crescimento. A Vítima sente que só existe se estiver sofrendo. O Salvador teme não ser amado se não estiver sendo útil. O Perseguidor teme a vulnerabilidade e, por isso, ataca primeiro.

Todos os papéis nascem de uma falta não resolvida. E cada um deles alimenta o outro, numa espécie de coreografia emocional tóxica. O que parece ajuda, amor ou justiça, muitas vezes é só medo de ficar só, de não ter valor ou de perder o controle.

Imagine uma situação em que uma pessoa, durante muito tempo, ofereceu apoio constante a um amigo em dificuldades — ajudava financeiramente, ouvia seus desabafos, resolvia problemas práticos. Esse amigo, acomodado no papel de quem sempre recebe, acaba se acostumando com a presença salvadora. No momento em que o apoio é retirado — seja por cansaço, necessidade de cuidar de si ou percepção de que a ajuda alimentava a dependência —, a relação muda bruscamente: o amigo que antes era grato se transforma, agora magoado, sentindo-se traído e abandonado. Passa a criticar quem o ajudava, chamando-o de egoísta ou ingrato, num movimento típico do Triângulo de Karpman, em que o papel de vítima se converte em perseguidor, revelando que o laço não era de verdadeira cooperação, mas de dependência emocional disfarçada de cuidado.

Exemplificando: Maria e o Papel do Estado

Maria passava as tardes sentada na varanda, olhando os galhos balançarem ao vento como quem esperava uma resposta. Depois que a mãe faleceu, tudo pareceu silenciar ao redor: os vizinhos passaram a acenar de longe, as contas começaram a se empilhar no canto da mesa e os dias se tornaram longos demais para quem não sabia mais onde cabia no mundo.

João, seu velho amigo da época do cursinho de datilografia (faz um tempão, né?), começou a ajudar. Primeiro com as compras do mês, depois com os remédios, depois ouvindo as histórias repetidas sobre a infância de Maria, quando ainda existia futuro. Mas o tempo foi passando, e João começou a se sentir preso àquela rotina de salvamento. Não dava conta da própria vida, quanto mais da de Maria. Quando começou a se afastar, Maria não entendeu. Achou que ele havia mudado, que a amizade era fraca, que estava sendo abandonada de novo.

O que nem Maria nem João sabiam — ou talvez soubessem, mas não tivessem forças para enfrentar — era que o que Maria precisava não era de um salvador, mas de acesso àquilo que era seu por direito. João não deveria ter se tornado o Estado na vida dela.

Foi só quando uma vizinha teimosa a levou até o CRAS que Maria descobriu que havia serviços ali esperando por ela: uma assistente social que a ouviu sem pressa, um encaminhamento para o CAPS, e até a possibilidade de voltar a estudar algo simples, só pra começar. Ali, Maria percebeu que ajuda não precisa vir de uma única pessoa até se esgotar — ela pode vir de uma rede, de uma política pública, de uma estrutura pensada para que ninguém afunde sozinho.

João, agora, toma café com ela às vezes. E quando ele não aparece, tudo bem. Porque Maria reencontrou algo que há muito tinha perdido: o próprio chão.

 

Filosofia: o outro como limite da liberdade

Se trouxermos um olhar filosófico, especialmente influenciado por autores como Jean-Paul Sartre e Martin Buber, percebemos que o Triângulo de Karpman denuncia uma ausência de encontro genuíno entre sujeitos. Em vez de nos relacionarmos com o outro como um "Tu" (como propõe Buber), nos relacionamos com funções: o outro é um meio para a confirmação do meu papel.

Sartre dizia que "o inferno são os outros" — não por serem maus, mas porque, ao me olharem, me reduzem a um personagem. No Triângulo de Karpman, eu não encontro o outro: eu uso o outro. Ele me serve para sustentar minha narrativa, para confirmar minha dor, minha moral ou minha virtude.

Nesse sentido, a libertação passa por um reconhecimento de si mesmo como sujeito — e do outro como outro sujeito. Sem papéis, sem jogos. Só assim podemos sair do triângulo e construir relações onde não há culpa por ser, nem obrigação por amar.

 

Sair do jogo é crescer

O Triângulo de Karpman é um mapa para entender os lugares onde nos perdemos emocionalmente. Sair dele não significa abandonar os outros, mas parar de usar as relações como forma de preencher o que não conseguimos olhar em nós mesmos.

Requer coragem para deixar de ser a vítima e assumir responsabilidades. Requer humildade para deixar de ser o salvador e permitir que o outro cresça sozinho. Requer sensibilidade para deixar de ser o perseguidor e acolher nossas próprias dores.

Mais do que um modelo psicológico, o triângulo é um espelho. E a filosofia nos convida a quebrar esse espelho — não para vivermos sem reflexo, mas para enxergarmos, enfim, de forma direta e sem distorções, o outro e a nós mesmos. 

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