Triângulo de Karpman
Às
vezes a gente sai de uma conversa se sentindo esvaziado, irritado ou com uma
estranha sensação de que entrou num enredo que não era bem nosso. Parece que,
sem perceber, caímos numa peça de teatro que já estava em cartaz há tempos — e
tomamos um papel que alguém esperava que assumíssemos. Nesse palco silencioso,
três personagens dominam o roteiro: a Vítima, o Salvador e o Perseguidor. É o
Triângulo de Karpman — e quase todo mundo já atuou nele, mesmo sem saber.
Essa
estrutura, apesar de parecer só mais uma teoria psicológica, revela um drama
humano profundo: nossa dificuldade em nos relacionarmos de forma autêntica, sem
manipulação, sem culpa, sem dependência. E, talvez, sem medo.
Psicologia:
jogos que sustentam vínculos doentios
Stephen
Karpman, discípulo da Análise Transacional, percebeu que
muitos conflitos emocionais seguem um padrão repetitivo. Um jogo psicológico em
que ninguém realmente vence, mas todos têm uma função simbólica: a Vítima,
que atrai atenção; o Salvador, que busca reconhecimento através da
ajuda; e o Perseguidor, que tenta impor controle.
Do
ponto de vista psicológico, o triângulo não é só uma descrição de
comportamentos, mas uma armadilha de identidade. A pessoa se agarra ao papel
para se sentir alguém — mesmo que isso custe paz, liberdade ou crescimento. A
Vítima sente que só existe se estiver sofrendo. O Salvador teme não ser amado
se não estiver sendo útil. O Perseguidor teme a vulnerabilidade e, por isso,
ataca primeiro.
Todos
os papéis nascem de uma falta não resolvida. E cada um deles alimenta o outro,
numa espécie de coreografia emocional tóxica. O que parece ajuda, amor ou
justiça, muitas vezes é só medo de ficar só, de não ter valor ou de perder o
controle.
Imagine
uma situação em que uma pessoa, durante muito tempo, ofereceu apoio constante a
um amigo em dificuldades — ajudava financeiramente, ouvia seus desabafos,
resolvia problemas práticos. Esse amigo, acomodado no papel de quem sempre
recebe, acaba se acostumando com a presença salvadora. No momento em que o
apoio é retirado — seja por cansaço, necessidade de cuidar de si ou percepção
de que a ajuda alimentava a dependência —, a relação muda bruscamente: o amigo
que antes era grato se transforma, agora magoado, sentindo-se traído e
abandonado. Passa a criticar quem o ajudava, chamando-o de egoísta ou ingrato,
num movimento típico do Triângulo de Karpman, em que o papel de vítima se
converte em perseguidor, revelando que o laço não era de verdadeira cooperação,
mas de dependência emocional disfarçada de cuidado.
Exemplificando:
Maria e o Papel do Estado
Maria
passava as tardes sentada na varanda, olhando os galhos balançarem ao vento
como quem esperava uma resposta. Depois que a mãe faleceu, tudo pareceu
silenciar ao redor: os vizinhos passaram a acenar de longe, as contas começaram
a se empilhar no canto da mesa e os dias se tornaram longos demais para quem
não sabia mais onde cabia no mundo.
João,
seu velho amigo da época do cursinho de datilografia (faz um tempão, né?),
começou a ajudar. Primeiro com as compras do mês, depois com os remédios,
depois ouvindo as histórias repetidas sobre a infância de Maria, quando ainda
existia futuro. Mas o tempo foi passando, e João começou a se sentir preso
àquela rotina de salvamento. Não dava conta da própria vida, quanto mais da de
Maria. Quando começou a se afastar, Maria não entendeu. Achou que ele havia
mudado, que a amizade era fraca, que estava sendo abandonada de novo.
O
que nem Maria nem João sabiam — ou talvez soubessem, mas não tivessem forças
para enfrentar — era que o que Maria precisava não era de um salvador, mas de
acesso àquilo que era seu por direito. João não deveria ter se tornado o Estado
na vida dela.
Foi
só quando uma vizinha teimosa a levou até o CRAS que Maria descobriu que havia
serviços ali esperando por ela: uma assistente social que a ouviu sem pressa,
um encaminhamento para o CAPS, e até a possibilidade de voltar a estudar algo
simples, só pra começar. Ali, Maria percebeu que ajuda não precisa vir de uma
única pessoa até se esgotar — ela pode vir de uma rede, de uma política
pública, de uma estrutura pensada para que ninguém afunde sozinho.
João,
agora, toma café com ela às vezes. E quando ele não aparece, tudo bem. Porque
Maria reencontrou algo que há muito tinha perdido: o próprio chão.
Filosofia:
o outro como limite da liberdade
Se
trouxermos um olhar filosófico, especialmente influenciado por autores como Jean-Paul
Sartre e Martin Buber, percebemos que o Triângulo de Karpman
denuncia uma ausência de encontro genuíno entre sujeitos. Em vez de nos
relacionarmos com o outro como um "Tu" (como propõe Buber), nos
relacionamos com funções: o outro é um meio para a confirmação do meu papel.
Sartre
dizia que "o inferno são os outros" — não por serem maus, mas porque,
ao me olharem, me reduzem a um personagem. No Triângulo de Karpman, eu não
encontro o outro: eu uso o outro. Ele me serve para sustentar minha narrativa,
para confirmar minha dor, minha moral ou minha virtude.
Nesse
sentido, a libertação passa por um reconhecimento de si mesmo como sujeito — e
do outro como outro sujeito. Sem papéis, sem jogos. Só assim podemos sair do
triângulo e construir relações onde não há culpa por ser, nem obrigação por
amar.
Sair
do jogo é crescer
O
Triângulo de Karpman é um mapa para entender os lugares onde nos perdemos
emocionalmente. Sair dele não significa abandonar os outros, mas parar de usar
as relações como forma de preencher o que não conseguimos olhar em nós mesmos.
Requer
coragem para deixar de ser a vítima e assumir responsabilidades. Requer
humildade para deixar de ser o salvador e permitir que o outro cresça sozinho.
Requer sensibilidade para deixar de ser o perseguidor e acolher nossas próprias
dores.
Mais do que um modelo psicológico, o triângulo é um espelho. E a filosofia nos convida a quebrar esse espelho — não para vivermos sem reflexo, mas para enxergarmos, enfim, de forma direta e sem distorções, o outro e a nós mesmos.
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