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domingo, 13 de julho de 2025

Reificação

Gente que vira coisa...

Tem dias em que a gente conversa com alguém e sai da conversa se sentindo uma planilha. Ou um botão de ‘ok’. Ou um suporte de ideias alheias. Parece exagero? Talvez. Mas quem já foi tratado como se fosse função — e não pessoa — sabe bem como é. Aquela sensação de virar meio invisível, de estar ali só pra cumprir um papel. Isso acontece mais do que a gente imagina. É aí que entra a palavra difícil, mas cada vez mais útil: reificação — transformar o humano em coisa.

A lógica das coisas

Na raiz do problema está uma lógica que valoriza mais o resultado do que o processo, mais a utilidade do que a presença, mais o que se extrai do outro do que o que se compartilha com ele. Isso está nos algoritmos que organizam encontros por compatibilidade como se fosse cardápio de delivery; nos ambientes de trabalho em que colegas são "recursos" e não pessoas; nas amizades que se esvaziam quando alguém já não oferece vantagens. A reificação é silenciosa — acontece sem estardalhaço, no automatismo dos dias corridos, nas rotinas apressadas onde só importa o que serve para alguma coisa.

O filósofo húngaro György Lukács, que trouxe a noção de reificação para o campo do marxismo, falava sobre como, na sociedade capitalista, tudo tende a se transformar em mercadoria — inclusive as relações. Quando tudo é mediado pelo valor de troca, até o afeto pode virar investimento. O outro passa a ser visto não pelo que é, mas pelo que pode nos oferecer. Nesse espelho turvo, a pessoa vira função: “o amigo que anima a festa”, “o colega que resolve planilhas”, “o crush que responde rápido”. Tudo isso esconde a complexidade real do outro — que pensa, sente, erra, muda.

Coisas que sentem

Mas se a reificação é esse congelamento da vida em categorias, a saída talvez esteja em descongelar. Em permitir que o outro seja mais do que esperamos, que nos surpreenda, que não nos sirva o tempo todo. Há quem diga que o oposto de reificar é reconhecer — ver a pessoa como sujeito, com desejos próprios, com tempo próprio, com histórias que não cabem no nosso uso dela.

E é curioso pensar como, ao tratar o outro como coisa, aos poucos também vamos nos tornando coisas. Nos moldamos para caber nos papéis que esperam de nós: o produtivo, o eficiente, o sempre presente, o divertido. Vamos nos afinando até não doer mais ser encaixado. Mas esse alívio tem um preço: a perda da própria voz. Uma coisa não protesta. Uma coisa não deseja.

Escutar para descoisar

Talvez o caminho mais simples — e mais subversivo — contra a reificação seja escutar. Escutar de verdade, sem já imaginar o que vamos responder, sem tentar resolver logo, sem transformar a fala do outro em dado a ser processado. Escutar é uma forma de devolver a alguém sua condição de sujeito. E escutar a si mesmo, nos momentos de silêncio, é um jeito de sair da posição de coisa.

O pensador brasileiro Antonio Cândido, em seu ensaio “O direito à literatura”, dizia que todo ser humano tem o direito de viver o imaginário, de sonhar e sentir fora das engrenagens da produtividade. É por aí também: o direito de não ser apenas útil, mas existir como presença inteira, com pausas, dúvidas, afetos e contradições.

A reificação é uma armadilha sutil, mas não invencível. Ela acontece quando esquecemos que as pessoas são mais do que as funções que desempenham — e que nós também somos. Recuperar isso pode parecer pouco, mas é um ato profundamente humano. E, nesses tempos em que tudo vira produto, tratar alguém como alguém pode ser o gesto mais revolucionário de todos.


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