Gente que vira coisa...
Tem
dias em que a gente conversa com alguém e sai da conversa se sentindo uma
planilha. Ou um botão de ‘ok’. Ou um suporte de ideias alheias. Parece exagero?
Talvez. Mas quem já foi tratado como se fosse função — e não pessoa — sabe bem
como é. Aquela sensação de virar meio invisível, de estar ali só pra cumprir um
papel. Isso acontece mais do que a gente imagina. É aí que entra a palavra
difícil, mas cada vez mais útil: reificação — transformar o humano em
coisa.
A
lógica das coisas
Na
raiz do problema está uma lógica que valoriza mais o resultado do que o
processo, mais a utilidade do que a presença, mais o que se extrai do outro do
que o que se compartilha com ele. Isso está nos algoritmos que organizam
encontros por compatibilidade como se fosse cardápio de delivery; nos ambientes
de trabalho em que colegas são "recursos" e não pessoas; nas amizades
que se esvaziam quando alguém já não oferece vantagens. A reificação é
silenciosa — acontece sem estardalhaço, no automatismo dos dias corridos, nas
rotinas apressadas onde só importa o que serve para alguma coisa.
O
filósofo húngaro György Lukács, que trouxe a noção de reificação para o
campo do marxismo, falava sobre como, na sociedade capitalista, tudo tende a se
transformar em mercadoria — inclusive as relações. Quando tudo é mediado pelo
valor de troca, até o afeto pode virar investimento. O outro passa a ser visto
não pelo que é, mas pelo que pode nos oferecer. Nesse espelho turvo, a pessoa
vira função: “o amigo que anima a festa”, “o colega que resolve planilhas”, “o
crush que responde rápido”. Tudo isso esconde a complexidade real do outro —
que pensa, sente, erra, muda.
Coisas
que sentem
Mas
se a reificação é esse congelamento da vida em categorias, a saída talvez
esteja em descongelar. Em permitir que o outro seja mais do que
esperamos, que nos surpreenda, que não nos sirva o tempo todo. Há quem diga que
o oposto de reificar é reconhecer — ver a pessoa como sujeito, com
desejos próprios, com tempo próprio, com histórias que não cabem no nosso uso
dela.
E
é curioso pensar como, ao tratar o outro como coisa, aos poucos também vamos
nos tornando coisas. Nos moldamos para caber nos papéis que esperam de nós: o
produtivo, o eficiente, o sempre presente, o divertido. Vamos nos afinando até
não doer mais ser encaixado. Mas esse alívio tem um preço: a perda da própria
voz. Uma coisa não protesta. Uma coisa não deseja.
Escutar
para descoisar
Talvez
o caminho mais simples — e mais subversivo — contra a reificação seja escutar.
Escutar de verdade, sem já imaginar o que vamos responder, sem tentar resolver
logo, sem transformar a fala do outro em dado a ser processado. Escutar é uma
forma de devolver a alguém sua condição de sujeito. E escutar a si mesmo, nos
momentos de silêncio, é um jeito de sair da posição de coisa.
O
pensador brasileiro Antonio Cândido, em seu ensaio “O direito à
literatura”, dizia que todo ser humano tem o direito de viver o imaginário, de
sonhar e sentir fora das engrenagens da produtividade. É por aí também: o
direito de não ser apenas útil, mas existir como presença inteira, com pausas,
dúvidas, afetos e contradições.
A
reificação é uma armadilha sutil, mas não invencível. Ela acontece quando
esquecemos que as pessoas são mais do que as funções que desempenham — e que
nós também somos. Recuperar isso pode parecer pouco, mas é um ato profundamente
humano. E, nesses tempos em que tudo vira produto, tratar alguém como alguém
pode ser o gesto mais revolucionário de todos.
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