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terça-feira, 8 de julho de 2025

Caminho Órfico

A alma quer voltar pra casa: ecos órficos no corpo moderno

Há dias em que acordamos com o corpo inteiro, mas com a alma ausente. O rosto no espelho está lá, os compromissos também, mas alguma parte nossa parece não ter voltado da noite. Essa sensação estranha, esse deslocamento íntimo, pode ser um resquício órfico — uma memória antiga, talvez mitológica, de que não pertencemos totalmente a este mundo.

O Orfismo, movimento religioso e filosófico surgido na Grécia arcaica, não é apenas uma curiosidade antiga: é uma chave para interpretar uma das maiores inquietações do presente. Segundo seus ensinamentos, estamos divididos: corpo e alma não são a mesma coisa, e a alma, por sua vez, tem sede de um lugar que não é este. Para os órficos, a vida terrena é um exílio, e o corpo é prisão. O objetivo da existência é, portanto, a purificação da alma para que ela não precise mais reencarnar. Em tempos modernos, talvez estejamos longe dos rituais secretos e das lamelas de ouro, mas não do sentimento de estranheza existencial.

Zygmunt Bauman, por exemplo, ao falar da “modernidade líquida”, aponta que vivemos num tempo de instabilidade, onde tudo escapa: relações, crenças, pertencimentos. Nessa liquidez, muitos se sentem suspensos, sem raízes — ou seja, sem casa interior. E não é isso que dizia o Orfismo, ao lembrar que a alma caiu no mundo e esqueceu de onde veio?

Assim como Orfeu desceu ao mundo dos mortos para buscar Eurídice, hoje muitos descem aos porões de si mesmos tentando resgatar algo perdido: sentido, paz, silêncio. Alguns buscam isso na terapia, outros no consumo, outros na fé — outros ainda no colapso. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço, descreve a alma contemporânea como exausta, sobrecarregada de positividade, desempenho e estímulos. Ele fala de uma alma que não descansa — mas, se lermos à moda órfica, talvez estejamos diante de uma alma que não se purifica.

Outro autor importante para reflexão é Roberto Assagioli, o psiquiatra italiano foi o criador da Psicossíntese, que entende a alma como um centro que precisa ser reconhecido, integrado e harmonizado com as várias partes do ser humano. A psicossíntese propõe exercícios para essa reconexão interior, como meditação, visualização e auto-observação — formas práticas de buscar a “casa interior” órfica.

A obsessão moderna com o corpo (fitness, dietas, longevidade) pode ser vista, curiosamente, como um eco distorcido do ideal órfico: não mais a negação do corpo como prisão, mas a tentativa de eternizá-lo, controlá-lo, torná-lo invencível. Mas essa tentativa falha, porque a insatisfação profunda continua. E é nesse ponto que o Orfismo reaparece, não como dogma antigo, mas como sensibilidade existencial: o reconhecimento de que algo em nós é maior que a matéria, e que o barulho do mundo não silencia a busca do retorno.

Ao revisitar o mito de Dionísio Zagreu — o deus despedaçado pelos Titãs — percebemos que, segundo os órficos, os humanos nasceram da fusão do divino com o titânico. Somos, portanto, ambíguos: temos dentro de nós uma centelha dos deuses e uma herança de violência e queda. No cotidiano, essa dualidade se revela em nossas contradições: queremos amar, mas também dominar; queremos paz, mas produzimos ruído; buscamos sentido, mas também sabotamos a própria jornada.

Mas é preciso lembrar que essa linguagem órfica — que fala da alma como exilada, do corpo como prisão e da existência como purificação — não nasceu apenas na Grécia. Muitos de seus elementos parecem ter ecoado de tradições mais antigas, como o Egito faraônico, onde já se falava da alma que deveria atravessar o mundo dos mortos e passar por provas antes de alcançar a eternidade. Textos como o Livro dos Mortos orientavam o espírito a declarar sua pureza diante de juízes divinos, em algo que lembra as lamelas órficas enterradas com os iniciados. Também na Mesopotâmia, com os mitos de Inanna, e na Índia védica, com a ideia de samsara (o ciclo de renascimentos), a alma era vista como um princípio que precisava se libertar da repetição e do esquecimento. O Orfismo, nesse sentido, é uma síntese grega de um sentimento espiritual mediterrânico mais antigo, que cruzou desertos, rios e montanhas até ganhar a forma de hinos secretos e ritos iniciáticos atribuídos a Orfeu.

O Orfismo é, assim, uma filosofia do retorno. E o verbo "voltar", hoje, tem ganhado força: voltar para si, voltar para o essencial, voltar para a natureza, voltar a ter tempo. O mundo contemporâneo, ainda que sem confessar, vive à procura de caminhos órficos, mesmo que disfarçados de autocuidado, minimalismo ou espiritualidade pop.

Talvez a pergunta que o Orfismo nos lança hoje não seja religiosa nem metafísica, mas existencial: o que em mim está perdido e quer voltar pra casa? E a casa, nesse caso, não é um lugar geográfico, mas um estado da alma: leve, limpa, em paz.

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