A alma quer voltar pra casa: ecos órficos no corpo moderno
Há
dias em que acordamos com o corpo inteiro, mas com a alma ausente. O rosto no
espelho está lá, os compromissos também, mas alguma parte nossa parece não ter
voltado da noite. Essa sensação estranha, esse deslocamento íntimo, pode ser um
resquício órfico — uma memória antiga, talvez mitológica, de que não
pertencemos totalmente a este mundo.
O
Orfismo, movimento religioso e filosófico surgido na Grécia arcaica, não é
apenas uma curiosidade antiga: é uma chave para interpretar uma das maiores
inquietações do presente. Segundo seus ensinamentos, estamos divididos: corpo e
alma não são a mesma coisa, e a alma, por sua vez, tem sede de um lugar que não
é este. Para os órficos, a vida terrena é um exílio, e o corpo é prisão. O
objetivo da existência é, portanto, a purificação da alma para que ela não
precise mais reencarnar. Em tempos modernos, talvez estejamos longe dos rituais
secretos e das lamelas de ouro, mas não do sentimento de estranheza
existencial.
Zygmunt
Bauman, por exemplo, ao falar da “modernidade líquida”,
aponta que vivemos num tempo de instabilidade, onde tudo escapa: relações,
crenças, pertencimentos. Nessa liquidez, muitos se sentem suspensos, sem raízes
— ou seja, sem casa interior. E não é isso que dizia o Orfismo, ao lembrar que
a alma caiu no mundo e esqueceu de onde veio?
Assim
como Orfeu desceu ao mundo dos mortos para buscar Eurídice, hoje
muitos descem aos porões de si mesmos tentando resgatar algo perdido: sentido,
paz, silêncio. Alguns buscam isso na terapia, outros no consumo, outros na fé —
outros ainda no colapso. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em A
Sociedade do Cansaço, descreve a alma contemporânea como exausta,
sobrecarregada de positividade, desempenho e estímulos. Ele fala de uma alma
que não descansa — mas, se lermos à moda órfica, talvez estejamos diante de uma
alma que não se purifica.
Outro
autor importante para reflexão é Roberto Assagioli, o psiquiatra
italiano foi o criador da Psicossíntese, que entende a alma como um centro que
precisa ser reconhecido, integrado e harmonizado com as várias partes do ser
humano. A psicossíntese propõe exercícios para essa reconexão interior, como
meditação, visualização e auto-observação — formas práticas de buscar a “casa
interior” órfica.
A
obsessão moderna com o corpo (fitness, dietas, longevidade) pode ser vista,
curiosamente, como um eco distorcido do ideal órfico: não mais a negação do
corpo como prisão, mas a tentativa de eternizá-lo, controlá-lo, torná-lo
invencível. Mas essa tentativa falha, porque a insatisfação profunda continua.
E é nesse ponto que o Orfismo reaparece, não como dogma antigo, mas como
sensibilidade existencial: o reconhecimento de que algo em nós é maior que a
matéria, e que o barulho do mundo não silencia a busca do retorno.
Ao
revisitar o mito de Dionísio Zagreu — o deus despedaçado pelos Titãs
— percebemos que, segundo os órficos, os humanos nasceram da fusão do divino
com o titânico. Somos, portanto, ambíguos: temos dentro de nós uma centelha dos
deuses e uma herança de violência e queda. No cotidiano, essa dualidade se
revela em nossas contradições: queremos amar, mas também dominar; queremos paz,
mas produzimos ruído; buscamos sentido, mas também sabotamos a própria jornada.
Mas
é preciso lembrar que essa linguagem órfica — que fala da alma como exilada, do
corpo como prisão e da existência como purificação — não nasceu apenas na
Grécia. Muitos de seus elementos parecem ter ecoado de tradições mais antigas,
como o Egito faraônico, onde já se falava da alma que deveria atravessar o
mundo dos mortos e passar por provas antes de alcançar a eternidade. Textos
como o Livro dos Mortos orientavam o espírito a declarar sua pureza
diante de juízes divinos, em algo que lembra as lamelas órficas enterradas com
os iniciados. Também na Mesopotâmia, com os mitos de Inanna, e na Índia védica,
com a ideia de samsara (o ciclo de renascimentos), a alma era vista como um
princípio que precisava se libertar da repetição e do esquecimento. O Orfismo,
nesse sentido, é uma síntese grega de um sentimento espiritual mediterrânico
mais antigo, que cruzou desertos, rios e montanhas até ganhar a forma de hinos
secretos e ritos iniciáticos atribuídos a Orfeu.
O
Orfismo é, assim, uma filosofia do retorno. E o verbo "voltar", hoje,
tem ganhado força: voltar para si, voltar para o essencial, voltar para a
natureza, voltar a ter tempo. O mundo contemporâneo, ainda que sem confessar,
vive à procura de caminhos órficos, mesmo que disfarçados de autocuidado,
minimalismo ou espiritualidade pop.
Talvez
a pergunta que o Orfismo nos lança hoje não seja religiosa nem metafísica, mas
existencial: o que em mim está perdido e quer voltar pra casa? E a casa,
nesse caso, não é um lugar geográfico, mas um estado da alma: leve, limpa, em
paz.
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