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terça-feira, 20 de maio de 2025

Zero e Nada

 


O valor secreto do zero e do nada

Outro dia, enquanto esperava o sinal abrir, reparei num grafite na parede: um enorme “0” rabiscado, quase como um protesto. Curioso como um simples círculo pode carregar tanto silêncio e, ao mesmo tempo, tanto significado. Ali, parado entre buzinas e mensagens não lidas, me dei conta: o zero e o nada, esses personagens invisíveis da existência, têm mais valor do que costumamos perceber.

Estamos acostumados a valorizar o cheio: uma conta bancária recheada, uma agenda lotada, uma casa com todos os cômodos ocupados. O nada, por outro lado, parece assustar. Zero parece fracasso. E, no entanto, o zero é condição de possibilidade. Como nos lembra o filósofo francês Gaston Bachelard, em A Intuição do Instantâneo, é no intervalo vazio que a mudança acontece. O nada não é ausência absoluta, mas espaço para o vir-a-ser.

Na matemática, o zero não representa apenas o “nenhum”; ele é marco de origem, ponto de referência, equilíbrio entre positivos e negativos. Sem ele, as contas se perderiam. No tempo, o zero é a aurora de todas as possibilidades. E no pensamento, o nada é o repouso necessário para o surgimento de uma nova ideia. Quem nunca teve um “branco” antes de uma inspiração súbita?

Bachelard nos ensina que o instante criador nasce da ruptura, não da continuidade. O nada, então, é ruptura fecunda. Quando dizemos “não sei”, estamos abrindo uma clareira para o saber. Quando dizemos “não tenho nada a perder”, abrimos espaço para agir sem medo. O zero é coragem de começar do começo.

Nas relações, também é assim. Às vezes, precisamos zerar as expectativas, silenciar os ruídos, aceitar o “nada acontecendo” para que algo novo possa surgir. O afeto verdadeiro não é barulhento — ele se acomoda no intervalo das palavras, no gesto não dito, no tempo que se dá sem pressa.

Na correria do dia a dia, esquecemos que o valor não está só no acúmulo. Uma sala vazia pode ser mais acolhedora que uma abarrotada. Uma pausa no meio do caos pode valer mais que um dia inteiro preenchido por obrigações. O nada tem peso, tem densidade. O zero é um tipo de presença discreta — como uma vírgula no texto da vida, indicando que algo ainda está por vir.

Talvez o grafite na parede estivesse dizendo isso. Que às vezes, tudo começa com o zero. Com o nada que ainda não foi contaminado pelo excesso. Com o espaço limpo de expectativas, onde a existência pode, enfim, respirar.

Você já parou para valorizar o que não está lá?

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Filosofia da Sombra

O que Escolhemos Não Ser

Outro dia, observando uma vitrine qualquer, me peguei imaginando como seria minha vida se tivesse escolhido outra profissão, outro lugar para viver, outra forma de ser. É um pensamento comum, mas que logo desvia para um território pouco explorado: não apenas o que poderia ter sido, mas o que escolhi não ser.

Nosso tempo é obcecado pela identidade. Livros de autoajuda, discursos motivacionais e até o algoritmo das redes sociais giram em torno da ideia de descobrir quem você é. Mas e se, ao invés de perguntar "quem sou eu?", perguntássemos "quem não sou?" ou "quem escolhi não ser?" A identidade pode não ser apenas aquilo que abraçamos, mas também o que rejeitamos – e é essa sombra, esse rastro de vidas não vividas, que nos molda silenciosamente.

A Identidade Negativa

A identidade, como geralmente pensamos, é construída por afirmação: "sou isso", "faço aquilo", "acredito nisso". Mas ela também se forma por negação: "não sou isso", "nunca faria aquilo", "jamais acreditaria nisso". Desde pequenos, traçamos limites invisíveis entre aquilo que aceitamos ser e o que deixamos para trás. Cada escolha não é apenas um caminho seguido, mas um leque de possibilidades descartadas.

Esse fenômeno fica evidente em decisões grandes, como a escolha de uma carreira. O médico que nunca foi músico. O professor que jamais foi atleta. O advogado que poderia ter sido cineasta. Mas ele também está nas pequenas escolhas do dia a dia. O "não vou responder essa provocação". O "não quero ser essa pessoa".

Seríamos capazes de definir uma vida inteira apenas pelo que uma pessoa não foi? Talvez. Pense em alguém que passou a vida fugindo de conflitos, rejeitando riscos, evitando envolvimentos. Essa identidade negativa moldou sua existência tanto quanto qualquer decisão afirmativa.

A Sombra e o Eu

Carl Jung falava da "sombra" como o lado oculto da psique, aquilo que reprimimos ou negamos em nós mesmos. Mas aqui, a ideia da sombra vai além do inconsciente. Não se trata apenas de desejos reprimidos, mas de tudo aquilo que, consciente ou inconscientemente, deixamos de ser.

Toda escolha carrega uma perda. Ao decidir seguir um caminho, não apenas escolhemos um destino, mas deixamos de trilhar todos os outros. Será que nossa sombra – esse espectro de vidas não vividas – se acumula silenciosamente, nos observando de longe?

Se sim, como lidar com ela? Alguns vivem atormentados pelas possibilidades que não seguiram, sentindo-se aprisionados pelas decisões tomadas. Outros fazem as pazes com suas sombras, reconhecendo que são parte essencial do que são.

O Peso das Escolhas

Nietzsche dizia que deveríamos viver de forma a desejar o eterno retorno: escolher cada ato como se fôssemos repeti-lo infinitamente. Mas essa perspectiva pode ser angustiante. Afinal, como ter certeza de que nossas escolhas são as certas? Talvez devêssemos perguntar não apenas o que escolhemos ser, mas o que escolhemos não ser – e se essa sombra é um peso ou um alívio.

Na vida, nunca seremos tudo o que poderíamos ter sido. Mas talvez seja justamente essa ausência que dá forma ao que realmente somos.