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quinta-feira, 31 de julho de 2025

Tendências Gregárias

Quando estar junto é instinto, não escolha

Há dias em que parece que tudo que a gente quer é ficar quieto, sozinho no canto, longe de barulho e obrigações sociais. Mas basta alguém rir alto na sala ao lado ou uma roda se formar em torno de uma conversa animada que, sem pensar muito, somos puxados de volta para perto dos outros. É como se um ímã invisível nos ligasse aos movimentos do grupo. Por mais que a gente cultive a ideia de individualidade, há uma força mais antiga que nos comanda: nossa tendência gregária.

Esse impulso de estar junto, de formar laços e tribos, não é apenas uma preferência cultural — é uma necessidade evolutiva. Desde os primeiros agrupamentos humanos, sobreviver era uma tarefa coletiva. Sozinhos, éramos presas fáceis. Em grupo, éramos caçadores, cuidadores, contadores de histórias. Até hoje, essa memória ancestral se inscreve no corpo: nosso sistema nervoso se regula melhor quando há alguém por perto. Um toque, um olhar, um silêncio compartilhado — tudo isso nos reorganiza internamente.

O filósofo espanhol Ortega y Gasset chama a atenção para o fato de que o “eu” nunca é um sujeito isolado, mas um “eu-com-os-outros”. Em Meditações sobre o Quixote, ele afirma: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo a mim”. Isso quer dizer que nos construímos na relação com o mundo, e especialmente com as pessoas ao redor. Nossas escolhas, hábitos e até pensamentos são moldados por esse convívio. A tendência gregária não é uma fraqueza do indivíduo, mas uma parte essencial do que o constitui.

No entanto, o perigo está na automatização desse instinto. Em nome do grupo, silenciamos opiniões, repetimos comportamentos, seguimos fluxos sem pensar. A gregariedade, quando cega, nos leva a dissolver a responsabilidade pessoal. A inovação, o questionamento e até o ato de dizer “não” ao grupo, às vezes, são necessários para que o convívio se torne saudável e não apenas uma zona de conforto.

Estar junto é uma força — mas só se o "junto" não engolir o "eu". Nossas tendências gregárias nos formam, nos protegem e nos curam. Mas, como toda força, precisam de consciência para não nos arrastar para o rebanho sem nome.

Talvez o verdadeiro desafio da vida em comum seja este: manter a chama do encontro viva, sem apagar a luz própria.


Leviatã e o Poder

Quando o monstro nos representa

 

Há dias em que basta assistir a uma sessão do parlamento ou a uma reunião de condomínio para que a gente entenda por que alguém, em algum momento da história, pensou ser melhor concentrar o poder nas mãos de um único soberano do que deixar todo mundo decidir tudo junto. Em meio ao caos cotidiano, à gritaria dos interesses e à vontade desencontrada das pessoas, surge a pergunta: quem vai nos proteger de nós mesmos? Foi com esse dilema que Thomas Hobbes criou a imagem do Leviatã, uma espécie de monstro político formado pela soma de todos nós.

 

O monstro necessário

O nome vem de uma criatura bíblica, um ser gigantesco das profundezas, incontrolável, assustador. Mas Hobbes não o invoca para aterrorizar — ao contrário, para proteger. Em seu livro Leviatã (1651), ele defende que, sem um poder soberano que concentre as decisões, a humanidade mergulha no estado de natureza, onde todos vivem em guerra contra todos. Ali, segundo ele, a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta”.

Hobbes parte de um princípio pessimista, mas realista: os seres humanos são movidos pelo medo, pela autopreservação e pelo desejo de poder. Nesse cenário, um contrato social é necessário — um pacto em que todos abrem mão de parte de sua liberdade em troca de segurança. E o Leviatã, o soberano absoluto, é quem garante a ordem e o cumprimento desse pacto. Ele não é eleito para ser simpático, mas para impedir que o mundo vire um campo de batalha de interesses.

 

O Leviatã nos dias de hoje

O problema é que, ao longo da história, o Leviatã cresceu. Em vez de ser apenas um protetor contra o caos, muitas vezes se tornou um opressor. O que era para proteger, passou a sufocar. E o que era para unir, passou a dividir. A crítica contemporânea aponta: quando o Estado concentra demais, torna-se também o autor da violência — e não seu antídoto. Pensadores como Michel Foucault vão mostrar que o Leviatã moderno não só reprime, mas molda, disciplina, define quem somos. O monstro já não nos protege apenas: ele nos fabrica.

Mas o mais inquietante talvez seja pensar que o Leviatã não é um ser externo. Ele é composto pelos corpos dos cidadãos. Cada decisão nossa, cada medo que temos, cada vez que pedimos mais segurança e menos liberdade, estamos alimentando o monstro. Ele cresce com a nossa delegação. E é aqui que o pensamento de Hobbes se atualiza de forma perturbadora: o Leviatã é o espelho do nosso desejo de ordem — mesmo quando isso nos custa autonomia.

 

Nietzsche, o Leviatã e a vontade de poder

Nietzsche, que rejeitava tanto o Estado quanto qualquer instância que se colocasse como verdade absoluta, provavelmente olharia para o Leviatã com desprezo e ironia. Em Assim falou Zaratustra, ele escreve: “O Estado é o mais frio de todos os monstros frios. Ele mente friamente; e esta é a mentira que escapa de sua boca: 'Eu, o Estado, sou o povo'.” Para Nietzsche, o Leviatã hobbesiano representa a negação da vontade individual, da potência criadora de cada ser humano. É uma máquina de mediocridade, de nivelamento, de obediência.

Se Hobbes acha que o Leviatã é a salvação contra o caos, Nietzsche vê no caos a chance de criação, de superação, de liberdade autêntica. O Leviatã, com sua promessa de segurança, paralisa o impulso vital. Ele evita o pior, sim, mas também impede o melhor.

 

E se o Leviatã estiver dentro de nós?

A grande virada filosófica pode estar em perceber que o Leviatã não é só uma metáfora do Estado. Ele também representa nossa própria tentativa de nos dominar. Criamos regras internas, repressões, identidades rígidas para dar conta do medo que temos de nós mesmos. Talvez o maior Leviatã não seja o governo nem a autoridade externa, mas aquela voz que diz “seja produtivo”, “seja normal”, “obedeça”.

Por isso, pensar o Leviatã hoje é refletir sobre o equilíbrio entre proteção e liberdade, ordem e potência, segurança e criação. E talvez, mais importante ainda, é perceber que o monstro que nos governa também é feito de nossas escolhas, nossos silêncios e nossas entregas.


quarta-feira, 30 de julho de 2025

Cegueira ou Denegações

Quando não ver é escolher não saber

Tem horas em que a gente finge que não viu. Passa batido por uma cena injusta, uma palavra atravessada, um silêncio que grita. “Deixa quieto”, dizemos, como se a quietude não fosse, muitas vezes, o berço da violência. Há uma diferença entre não ver e não querer ver — e é nessa fresta que se instala um tipo de cegueira escolhida, uma negação da realidade que, com o tempo, se torna hábito.

Chamemos isso de denegação, como propôs Freud: o sujeito reconhece o que é, mas recusa-se a aceitá-lo como verdadeiro. Vê, mas diz a si mesmo que não é bem assim. Não é ignorância pura, é um mecanismo de defesa, uma forma de manter intacta a imagem que temos de nós mesmos, do mundo, das pessoas próximas. A denegação protege — mas também anestesia, torna o real um borrão onde o incômodo é suavizado até se dissolver.

O filósofo francês Jacques Rancière, ao refletir sobre o partilhamento do sensível, nos ajuda a pensar esse fenômeno. Segundo ele, aquilo que percebemos como real, visível ou audível está condicionado por uma partilha — uma divisão do que pode ser dito, visto, sentido. A cegueira, nesse contexto, não é ausência de visão, mas resultado de um regime de percepção. Não vemos o que não fomos ensinados a ver. Ou pior: escolhemos não ver o que ameaça nossa ordem interna, emocional ou política.

No cotidiano, isso aparece nas pequenas covardias: a piada preconceituosa que deixamos passar, a solidão do colega de trabalho que ignoramos, o comportamento autoritário que justificamos como “jeito dele”. A denegação permite que continuemos a funcionar, a produzir, a sorrir. Mas ela cobra seu preço: a realidade volta, quase sempre, pelo lado do sintoma.

Talvez o maior gesto de coragem hoje seja reaprender a ver — e aceitar o que se vê. Porque a lucidez, ainda que dolorosa, pode ser libertadora. Como diz a escritora portuguesa Lídia Jorge: “a cegueira é a maneira como o mundo escolheu não ver a sua própria desordem”.

Então, diante de cada escolha de ignorar, vale perguntar: isso é cegueira — ou apenas mais uma denegação disfarçada de paz?


Espoliação do Tempo

A gente costuma dizer que está sem tempo como quem diz que perdeu a carteira — com pressa, indignação e certo pânico. Mas o tempo não é uma moeda que a gente carrega no bolso. Ele nos atravessa, escorre pelas ações, pelas distrações, pelas pausas mal aproveitadas e até pelas obrigações alheias que vamos aceitando em nome da convivência, da produtividade ou da culpa. Talvez não seja que nos falta tempo, mas que ele nos é tomado — espoliado, como se houvesse uma constante pilhagem silenciosa acontecendo dentro do nosso cotidiano.

Espoliar o tempo é mais do que desperdiçá-lo. É ser roubado em plena luz do dia, sem sequer notar que estamos sendo levados — em atenção, em presença, em sentido. É o scroll infinito das redes, o acúmulo de reuniões que poderiam ser silêncios, os compromissos vazios de propósito. E mais: é o modo como o tempo dos outros se impõe sobre o nosso, como se houvesse um direito tácito de ocupá-lo.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra A Sociedade do Cansaço, oferece uma lente potente para pensar isso. Ele mostra como o sujeito contemporâneo, ao se tornar empreendedor de si mesmo, entra numa lógica de autoexploração. Não é mais o patrão que toma seu tempo — é você mesmo, convertido em gerente e escravo ao mesmo tempo. A espoliação, então, deixa de ser um ato externo e passa a ser um consentimento interno, um assalto com autorização.

A inovação necessária talvez seja recuperar o tempo como um bem coletivo interior. Como propôs o próprio Han, precisamos reaprender a “habitar o tempo”, e não apenas geri-lo. Isso significa voltar a dar valor ao ócio contemplativo, ao ritmo próprio das coisas, à escuta do corpo e à desobediência temporal — dizer “não” ao cronograma imposto, recusar o convite para correr onde não há urgência real.

Ser senhor do próprio tempo, hoje, é quase um ato revolucionário. Reivindicar minutos livres de finalidade, horas sem culpa, dias em que o tempo nos pertence por inteiro. Porque enquanto não cuidarmos do tempo como quem cuida da própria alma, ele continuará sendo espoliado — e nem perceberemos o que estamos perdendo.


terça-feira, 29 de julho de 2025

Predomínio da Vulgaridade

Quando a vulgaridade toma conta: o silêncio como refúgio

Hoje em dia, parece que tudo grita. Redes sociais gritam, os anúncios gritam, até as conversas casuais andam carregadas de performance. É como se o gosto — aquilo que molda o belo, o justo, o sensato — tivesse sido esmagado por um rolo compressor de urgências vazias. Quando a vulgaridade vira norma, o sensível vira exceção. E é justamente nesse ponto que os antigos escolhiam o caminho oposto: o do retiro silencioso.

O filósofo romano Sêneca, em sua carta a Lucílio, aconselhava: “Retira-te para dentro de ti mesmo, tanto quanto puderes.” Para ele, o barulho do mundo era mais que uma distração — era um perigo para a alma. E essa ideia, longe de ultrapassada, talvez nunca tenha sido tão atual. Em tempos de excesso, o verdadeiro luxo é o silêncio. Em tempos de exposição constante, o verdadeiro gesto revolucionário pode ser desaparecer por um tempo, não para fugir, mas para recuperar-se.

O retiro, nesse sentido, não é um isolamento arrogante, mas uma reaproximação humilde. É como voltar para casa depois de ter se perdido numa cidade ruidosa. Lá dentro, no silêncio do que somos, longe do gosto massificado e da repetição cansada, podemos voltar a sentir o que realmente nos toca. A vulgaridade não se combate com briga — mas com recuo. Porque às vezes é preciso sair da festa para lembrar por que ela começou.

O gosto, então, talvez não morra — apenas adormeça. E o retiro, seja ele um quarto calmo, um banco no parque ou um mergulho no próprio pensamento, é o lugar onde ele acorda.

Desejos Miméticos

O Espelho dos Outros

Há dias em que a gente acha que quer uma coisa, mas, olhando bem, parece que só quis porque viu alguém querendo. Um amigo compra um carro novo e, de repente, nosso velho automóvel já não parece tão confiável. Uma colega muda de carreira e logo o nosso trabalho começa a parecer pequeno, sem graça. O desejo parece autêntico — mas será mesmo? Ou será que, como quem boceja ao ver alguém bocejar, desejamos o desejo alheio?

Essa é a tese provocadora do pensador francês René Girard, que cunhou o termo desejo mimético. Segundo Girard, não desejamos diretamente as coisas — desejamos o que o outro deseja. O objeto em si (o carro, o cargo, o parceiro, o estilo de vida) não tem valor intrínseco para nós até que o vejamos desejado por alguém que admiramos ou com quem competimos. O desejo, então, é uma forma de espelho, mas um espelho deformado, porque reflete não o que somos, mas o que imaginamos que deveríamos ser para sermos desejáveis.

A inovação aqui não está apenas em notar que imitamos, mas em perceber que a imitação do desejo é motor de conflitos, invejas, disputas e até violências. Girard chega a sugerir que as sociedades aprendem a conter esse ciclo mimético canalizando-o para bodes expiatórios — figuras ou grupos que recebem a culpa coletiva e são sacrificados, real ou simbolicamente, para restaurar a paz social.

Mas vamos sair um pouco da teoria e voltar à vida real. Já reparou como certas tendências só parecem irresistíveis quando muitos já aderiram? Como uma pessoa se torna “interessante” quando outros demonstram interesse por ela? Ou como o valor de algo sobe quando há escassez simbólica, mesmo que o objeto em si não tenha mudado?

A inovação filosófica do conceito de Girard está em deslocar o foco do desejo como algo interno, autônomo, para algo profundamente relacional e teatral. Isso abre um espaço de libertação: se reconhecemos que muitos dos nossos desejos são imitativos, podemos nos perguntar — de quem estou imitando este desejo? E por quê?

Essa pergunta simples pode ser o começo de um pensamento mais livre. Em vez de seguir o cardume dos desejos alheios, talvez possamos mergulhar em silêncio no que realmente nos move — naquilo que não precisa de plateia para ter valor.

Como diria o próprio Girard: “Não sabemos o que desejamos; imitamos o desejo dos outros para saber o que desejar.” E se, por um momento, parássemos de imitar e apenas escutássemos? Talvez então descobríssemos que o nosso verdadeiro desejo... não se parece com o de ninguém.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Estereótipo de Escravidão

Ele é aquilo que não é: o modelo estereotipado da escravidão

 

Tem gente que, ao ouvir a palavra "escravidão", pensa logo em imagens já gastas: correntes, senzalas, navios negreiros. Parece que o sofrimento precisa ter uma estética para ser reconhecido. O estereótipo da escravidão se cristalizou como uma fantasia dolorosa, mas controlável — algo que se pode arquivar como passado e lamentar à distância. E é aí que mora o perigo. Porque o estereotipado da escravidão é, muitas vezes, aquilo que ela já não é. E, ao mesmo tempo, é aquilo que ela ainda é — mas disfarçada, dissimulada, invisibilizada pelo próprio clichê.

O estereótipo torna a escravidão um "personagem": o corpo negro suado, o chicote, o senhor cruel. Tudo isso existiu, sim, e é importante lembrar. Mas quando só isso é lembrado, o estereótipo cumpre a função traiçoeira de apagar as novas formas de cativeiro. Porque se não há grilhões visíveis, não parece haver prisão. Se a pessoa recebe salário, então não está escravizada. Se tem celular, então está livre. Mas o que acontece quando alguém trabalha 15 horas por dia numa oficina, come e dorme no mesmo espaço insalubre, sem contrato, sem futuro? O estereótipo diz: “isso não é escravidão”. E nós, muitas vezes, acreditamos.

O filósofo Jean Baudrillard dizia que a simulação pode substituir o real — uma imagem pode ser mais real que a própria realidade, e acabar matando o que ela representa. O estereótipo da escravidão é isso: uma imagem tão forte, tão teatral, que rouba o lugar da experiência real de quem vive em cativeiro hoje, em outras formas. Ele impede o olhar, adormece a sensibilidade, padroniza o sentir.

E há mais: o estereótipo transforma o escravizado em um “outro” tão distante, que se torna quase irreal. Como se fosse uma figura de museu. Como se não estivesse no motoboy exausto, na empregada que dorme na casa dos patrões e tem a vida inteira atravessada pelo “favor”, ou no garoto que vende bala no sinal desde os seis anos de idade. O estereótipo desumaniza — ainda que em tom piedoso.

Assim, o estereotipado da escravidão é aquilo que não é, porque simula um passado encerrado, fecha a porta da reflexão e nos impede de perceber a continuidade perversa de um sistema que se atualiza. É como se a escravidão tivesse sido “resolvida” porque agora ela aparece com outra roupa. Mas ela está ali — justamente onde o olhar viciado pelo clichê se recusa a ver.

A libertação, nesse cenário, não é só uma questão jurídica ou política. É também simbólica e filosófica. Passa por desconstruir a imagem fácil e confortável que fazemos da escravidão e abrir os olhos para suas presenças sutis. O trabalho da filosofia, aqui, é o de rasgar o véu da repetição, fazer perguntas incômodas, desconfiar das imagens prontas.

Milton Santos, em sua crítica à globalização, falava de uma "globalização perversa", onde a técnica e o capital organizam o mundo de modo que a liberdade se torne um privilégio, e não um direito. Em suas palavras, “a perversidade do sistema se realiza ao fazer parecer que todos participam, quando muitos estão, na verdade, aprisionados.” Ora, isso nos leva diretamente ao coração do nosso tema: o estereótipo da escravidão como ilusão de distância — e a nova escravidão como invisível justamente por parecer "inclusiva".

Pensemos num exemplo: a jovem que trabalha num aplicativo de entrega. Ela “tem liberdade” de escolher seu horário, não tem patrão visível, carrega um celular caro no bolso. Mas é forçada a trabalhar 12, 14 horas por dia para conseguir sobreviver, não tem direitos trabalhistas, se acidenta e ninguém responde. Ela é livre? Ou está presa a um sistema que a utiliza como peça descartável? Ela é o que o estereótipo não reconhece: a escravizada do algoritmo.

Outro caso: o trabalhador rural em áreas remotas, que “aceita” viver em alojamentos degradantes, com alimentação insuficiente, endividado com o próprio patrão — uma dívida que nunca termina. A Justiça do Trabalho já reconheceu milhares de casos de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil nos últimos anos. Mas como não há pelourinho, muitos se recusam a chamar pelo nome certo. O estereótipo venceu. Ele nos ensinou a ver só o passado.

E não para por aí. Há uma escravidão doméstica, muitas vezes travestida de “ajuda”. A empregada que cuida dos filhos, limpa a casa, cozinha, vive décadas com a mesma família — mas sem carteira assinada, sem independência, sem vida própria. Ela é tratada como “parte da família”, dizem. Mas família que não dá férias, salário justo ou aposentadoria? A linguagem do afeto esconde a lógica da servidão.

Milton Santos nos ajuda a ver que a liberdade é desigualmente distribuída — e que a aparência de escolha pode mascarar sistemas profundos de exclusão. A escravidão moderna não se impõe com correntes, mas com contratos precários, algoritmos, dívidas e dependência emocional. E, acima de tudo, com uma ideia formatada do que a escravidão “deveria parecer” — para que o resto possa continuar existindo sem nome.

É preciso, então, lutar contra o que parece, e ouvir o que é. A filosofia aqui precisa ser um ato de audição — de escutar os silêncios, os não-ditos, os murmúrios de uma realidade abafada por imagens repetidas. Libertar-se da escravidão passa também por libertar o olhar. Ver com outros olhos. Olhos que enxergam o que o estereótipo não quer mostrar.

Porque, no fim, o estereotipado da escravidão é o fantasma confortável que a sociedade inventou para não ver seus próprios monstros reais. E enquanto não olharmos de frente os novos grilhões, continuaremos fingindo que somos livres — enquanto seguimos presos, somos os neoescravos!

Como escreveu Clarice Lispector:

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

E talvez ainda nem forma. Mas exige olhos novos para ser vista.


Posições Sociais


Entre o Lugar Que Ocupamos e o Espaço Que Inventamos


A gente nem sempre escolhe onde nasce, com quem vai dividir a mesa de café, nem o tamanho do quarto onde dorme. Mas, com o tempo, começamos a perceber que cada detalhe disso tudo — o sobrenome, o bairro, a profissão dos pais, a cor da pele, até o jeito de falar — já dizia muito sobre a posição que iríamos ocupar no mundo. E, por mais que a vida seja movimento, certas posições parecem ser feitas de cimento.

Este ensaio propõe pensar as posições sociais não como degraus fixos numa escada social ou papéis estagnados num teatro social, mas como zonas de tensão entre o dado e o possível, entre o que herdamos e o que ousamos transformar. Partiremos de uma leitura sociológica inspirada em Bourdieu e Giddens, sem perder o fio filosófico de pensadores como Sartre, Simone de Beauvoir e Achille Mbembe, para então propor um olhar inovador: as posições sociais como ficções performativas que podem ser desmontadas e reinventadas.

 

A armadilha do lugar natural

A sociedade adora nos convencer de que cada um está onde deveria estar. Que a faxineira “tem cara de faxineira”, que o médico branco de voz firme nasceu pra comandar, que a favela é inevitável, que o sucesso tem cheiro de mérito. Pierre Bourdieu chamou isso de habitus: um conjunto de disposições aprendidas que fazem com que o mundo social pareça natural, quando na verdade ele é o resultado de lutas e convenções.

Essa naturalização das posições sociais é um modo sutil (e eficaz) de conservar as hierarquias. Os corpos negros, femininos, periféricos, dissidentes, são convidados a acreditar que não têm “perfil” para certos espaços. As posições sociais não são apenas localizações neutras, mas marcos simbólicos que definem onde se pode falar, amar, trabalhar e até sonhar.

 

A posição como performance

Mas e se, como diria Judith Butler, a posição fosse uma performance? Se aquilo que parecemos ser — o advogado sério, a dona de casa invisível, o “bandido” sem futuro — fosse menos essência e mais repetição? A ideia de performatividade rompe com a fixidez da posição social. Em vez de pensá-la como um ponto fixo, poderíamos vê-la como um movimento coreografado socialmente, mas com margem para improviso.

Quando uma mulher negra ocupa a tribuna do Senado, quando um jovem periférico ensina literatura clássica, quando um homem trans vira obstetra — a posição social é rasgada e costurada de novo. Esses gestos não anulam o peso da estrutura, mas mostram que ela pode ser contestada por dentro.

 

Invenção e deslocamento

Anthony Giddens propôs que a vida social é um fluxo contínuo de reflexividade. As posições não são eternas porque os sujeitos são capazes de refletir sobre o lugar onde estão e projetar deslocamentos. Não se trata de “subir na vida” no sentido capitalista, mas de redesenhar os contornos do possível.

Nesse sentido, as posições sociais também podem ser vistas como zonas provisórias de identidade. O que somos agora — professor, empregada, estudante, desempregado — não precisa ser o que seremos, e nem resume o que somos. Como dizia Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher” — e o mesmo vale para todas as outras construções sociais.

 

Para além da escada

Num mundo que insiste em nos colocar em escadas — onde o alto vale mais que o baixo — talvez seja hora de propor outra imagem: a do campo múltiplo, onde as posições sociais são interdependentes e mutáveis. Onde a dignidade não vem de subir, mas de existir com liberdade e reconhecimento, em qualquer lugar.

Essa nova ética não ignora as injustiças, mas propõe um horizonte onde posição social não signifique destino. Onde o carteiro possa ser poeta, onde a diarista possa ensinar sociologia, onde o menino da quebrada possa ser filósofo — não apesar de onde veio, mas também por causa disso.

 

O desafio contemporâneo é, então, olhar para as posições sociais como construções políticas e poéticas. Como espaços simbólicos que podem ser tensionados, desviados, reinventados. Talvez não tenhamos nascido no lugar ideal. Mas entre o lugar que nos foi dado e o espaço que podemos inventar, cabe o mundo inteiro.


domingo, 27 de julho de 2025

Consumo e Lazeres

Máscaras de escravidão: Quando a folga vira coleira

Sabe aquele momento em que finalmente chega o fim de semana, e a gente pensa: “agora sim, vou descansar”? Mas, em vez de repouso, vem uma lista invisível de coisas que precisamos fazer para “aproveitar o tempo livre”: maratonar séries, visitar o novo restaurante da moda, comprar algo em promoção, postar uma foto sorridente com filtro. Parece descanso, mas será mesmo? Ou será que colocamos máscaras de lazer que escondem novas formas de cansaço — e até de escravidão?

Há também o fenômeno curioso da multidão que se move em bloco, mesmo quando acredita estar agindo por vontade própria. Como gado em pastagem, todos vão onde todos vão, como se o simples fato de muitos estarem fazendo algo já fosse um selo de autenticidade. O novo lugar “instagramável”, o festival do momento, o destino turístico da vez — nada disso é escolhido por real desejo, mas por contágio. A mesmice se disfarça de tendência, e o medo de ficar de fora empurra cada um para dentro da trilha marcada. Romper com isso exige não só coragem, mas uma vontade rara de andar em sentido contrário, de suportar o incômodo de pensar o próprio caminho.

 

Liberdade embalada a vácuo

Ao longo da história, os momentos de lazer foram associados à liberdade. Os gregos antigos, por exemplo, valorizavam o ócio criativo — o tempo livre para contemplar, refletir, filosofar. Hoje, porém, o lazer se mistura com a lógica do mercado. O que chamamos de “tempo livre” muitas vezes é apenas o tempo em que não estamos produzindo diretamente, mas continuamos girando a engrenagem econômica: consumimos conteúdos, compramos experiências, alugamos sensações.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han chama isso de “sociedade do desempenho”, em que até o prazer precisa ser eficiente. A academia vira palco de sofrimento voluntário; o turismo, um check-list apressado; os hobbies, vitrines de produtividade. Somos livres para escolher — contanto que sigamos os caminhos traçados pelo algoritmo, pelo marketing, pela necessidade de sermos vistos.

 

Lazer como distração, consumo como alívio

Essa dinâmica cria uma espécie de dopamina social: cada compra, cada passeio, cada like nos dá uma breve euforia que logo se esgota. Como numa dependência, buscamos de novo. O lazer, em vez de nos renovar, nos anestesia. Não sentimos o tempo passar, mas ele escorre — e a vida vai ficando para depois.

Pior: quando estamos exaustos, recorremos ao consumo como se fosse cura. Um sapato novo para compensar o estresse. Um filme bobo para esquecer o vazio. Um aplicativo de entrega para evitar pensar. Tudo rápido, prático e... superficial. A escravidão aqui é sutil: não há correntes visíveis, apenas uma constante fuga de si.

 

As máscaras da liberdade

O mais perverso é que tudo parece escolha. Afinal, ninguém nos obriga a gastar o sábado no shopping ou as férias em um resort com wi-fi. Mas será que estamos realmente escolhendo? Ou apenas reproduzindo desejos que nem sabemos de onde vieram?

O filósofo francês Gilles Deleuze dizia que o capitalismo não reprime os desejos — ele os fabrica. Assim, mesmo quando acreditamos estar nos libertando da rotina, podemos estar apenas obedecendo a outras rotinas, mais sofisticadas e camufladas.

O lazer vira máscara: atrás do riso está o tédio, atrás da selfie está a solidão, atrás da compra está a angústia.

 

Desmascarar-se para viver

Talvez o verdadeiro lazer — aquele que liberta — seja o que não se pode vender nem programar. Uma conversa sem pressa. Um silêncio sem culpa. Uma caminhada sem destino. Atos que não rendem conteúdo nem curtidas, mas nos reconectam com a própria existência.

Repensar o consumo e os lazeres não significa negá-los, mas desmascará-los. Olhar para eles sem a maquiagem da publicidade, sem a ansiedade da performance. E, quem sabe, redescobrir que o tempo livre pode ser mesmo nosso — quando deixamos de obedecer à lógica de que tudo precisa valer a pena.

A escravidão mais difícil de romper

A escravidão mais profunda é aquela que se apresenta como liberdade. E o lazer, quando capturado pelo consumo, vira disfarce de um sistema que exige produtividade até no descanso. Libertar-se disso é tarefa difícil — mas necessária, se quisermos não apenas sobreviver, mas viver.

Como dizia Nietzsche, “há mais ídolos do que realidades no mundo”. Talvez o lazer moderno seja um desses ídolos. E só ao quebrá-lo, podemos, enfim, descansar. De verdade.

Sem Contexto

...gera descrédito: uma chave para o entendimento social

Sabe quando alguém chega no meio da conversa e tenta opinar como se tivesse entendido tudo? A resposta costuma ser um silêncio constrangido, ou aquele olhar de “você não sabe do que está falando”. No cotidiano, seja em uma roda de amigos, nas redes sociais ou mesmo no ambiente de trabalho, percebemos que quando algo é dito ou feito fora do seu contexto, a reação imediata é de desconfiança. É como tentar interpretar um sonho sem saber o que a pessoa viveu no dia anterior. E é daí que nasce uma provocação interessante: será que a falta de contexto, além de gerar confusão, também mina a nossa confiança no outro — e até mesmo na verdade?

A ideia de que "sem contexto gera descrédito" não é apenas uma constatação prática, mas uma crítica ao modo como construímos sentido na vida social. Vivemos em uma sociedade onde os fragmentos de informação circulam mais rápido do que a compreensão profunda. Nas redes sociais, por exemplo, uma frase isolada pode viralizar e destruir reputações, mesmo que tenha sido retirada de um discurso mais amplo e coerente. Isso revela que o contexto não é um detalhe, mas uma parte estrutural da verdade social.

Do ponto de vista filosófico, essa questão dialoga com o pensamento de Paul Ricoeur, que dedicou boa parte de sua obra à hermenêutica — a arte de interpretar. Para ele, compreender algo exige situá-lo em seu tempo, espaço, intenção e linguagem. Ricoeur afirma: "O texto só fala quando é relido à luz do mundo em que foi escrito.” Assim, quando ignoramos o contexto de uma ação ou discurso, traímos seu significado. A falta de contexto, portanto, não apenas gera descrédito: ela falseia o mundo.

Sociologicamente, essa lógica de descontextualização está intimamente ligada à fragmentação das relações modernas. Como apontou Zygmunt Bauman, vivemos tempos líquidos, em que os vínculos são frágeis, e a confiança não se constrói com solidez. O descrédito nasce, muitas vezes, da rapidez com que somos levados a julgar — e não a compreender. As instituições, os indivíduos e os saberes são colocados em xeque, não por suas falhas internas, mas porque seus discursos são recortados e reciclados em narrativas distorcidas.

Num nível mais profundo, a ausência de contexto gera não só o descrédito do outro, mas também o esvaziamento de sentido das nossas próprias experiências. Quando vivemos no automático, sem nos perguntar o porquê de nossas ações, acabamos descontextualizando a nós mesmos. E nesse estado de alienação cotidiana, a vida vai se tornando algo desacreditado, sem raiz e sem direção.

Paul Ricoeur, com sua sensibilidade hermenêutica, nos alerta que interpretar é sempre um ato de reconstrução. Ao resgatar o contexto, recuperamos o fio que liga a fala ao seu sentido, a ação à sua intenção. Segundo ele, "a suspeita nasce quando perdemos o horizonte do texto." Desse modo, o descrédito é menos um defeito moral e mais uma consequência epistemológica: não confiamos porque não compreendemos.

Resumindo: Então, dizer que “sem contexto gera descrédito” é reconhecer que a confiança social, a verdade interpretativa e até a identidade pessoal são tecidos feitos de relações situadas. Ao nos tornarmos uma sociedade de interpretações instantâneas, nos arriscamos a ser também uma sociedade do descrédito mútuo. Recolocar o contexto no centro do diálogo não é apenas um gesto ético: é um esforço civilizatório. Afinal, compreender o outro — e a si mesmo — exige tempo, atenção e a disposição de ouvir mais do que se vê.

sábado, 26 de julho de 2025

Prolixa e Inesgotável


...sobre a vastidão do sentido

 

Toda vez que tentamos colocar em palavras o que sentimos, o que pensamos ou o que simplesmente paira no ar entre um olhar e outro, corremos o risco de sermos prolixos. Repetimos ideias, giramos em torno de um ponto, tentamos explicar com mais uma metáfora, mais um exemplo, como se a verdade estivesse escondida na próxima frase. E, ao mesmo tempo, sentimos que nunca será o suficiente. Porque aquilo que nos atravessa — o desejo, a dúvida, a lembrança, o medo, o amor — é inesgotável. E talvez seja por isso que a linguagem, com todos os seus excessos, ainda é a tentativa mais honesta que temos de tocar o intangível.

Esse ensaio é sobre isso: sobre o prolixo que não é apenas excesso, mas busca; e o inesgotável que não é apenas volume, mas profundidade.

 

A prolixidade como gesto de resistência

Chamar alguém de prolixo costuma soar como crítica. Como se houvesse uma medida justa da fala, do texto, do pensamento. Mas e se a prolixidade não for falha, e sim um modo de dizer que ainda não terminou? Que há camadas não resolvidas no assunto, que a vida exige voltas e digressões, como uma rua que insiste em não ser reta porque tem histórias demais para ignorar?

A linguagem prolixa resiste à lógica da produtividade. Ela diz: “Espere. Ainda não terminei. Há mais uma nuance.” Em um mundo que valoriza o resumo, o pitch, o slogan, ser prolixo é recusar-se a empobrecer o sentido. É como escrever cartas longas em tempos de mensagens curtas. O prolixo acredita que cada desvio é uma chance de encontro.

 

O inesgotável: o que permanece mesmo depois do fim

Há coisas que nunca se esgotam. Um livro relido, um cheiro que não conseguimos nomear, uma amizade que muda, mas não desaparece. O inesgotável não está apenas nas coisas grandes, mas nos pequenos detalhes que nunca são iguais — como o modo como alguém diz “bom dia” ou o som que o silêncio faz numa tarde chuvosa.

O filósofo Gaston Bachelard dizia que a imaginação é um poder de rever. E talvez o inesgotável resida justamente aí: na possibilidade de ver de novo, sob outro ângulo, algo que pensávamos já ter compreendido. O inesgotável é o que retorna com outra face. Não cansa de existir.

 

Onde os dois se encontram

Quando falamos demais sobre algo, às vezes é porque esse algo não cabe no limite da nossa razão. Falar é tentar delimitar, e ser prolixo é assumir que falhar faz parte da tarefa. O prolixo e o inesgotável se encontram na tentativa constante de dizer o indizível — seja no amor, na arte, na filosofia ou na própria experiência do viver.

A escritora Clarice Lispector foi uma das maiores representantes desse esforço. Ela escrevia como quem escavava dentro de si, dando voltas, criando frases que pareciam se contradizer, mas que, no fundo, apenas refletiam o abismo de onde nasciam. Sua escrita era prolixa porque o tema era inesgotável: o ser humano.

 

Então, que nunca nos baste

Talvez devêssemos abandonar o ideal da precisão e abraçar, de vez, a fluidez daquilo que não se fecha. O prolixo não é o que enche espaço à toa, é o que aceita a complexidade. E o inesgotável é o que nos salva da estagnação, lembrando-nos de que sempre há mais a ser dito, sentido, vivido.

Que nunca nos baste.

Que a fala seja longa, o pensamento, repetido, e a vida — sempre — maior que a última palavra.


Devaneio Estético

Um ensaio filosófico com pés descalços e olhos abertos

Às vezes, entre o barulho do trânsito e a pressa dos dias, nosso olhar se perde num detalhe inútil: uma rachadura bela numa parede antiga, o modo como a luz atravessa um copo com água, a coreografia casual de folhas levadas pelo vento. Não estávamos procurando nada disso. Mas algo dentro de nós suspendeu o tempo e, por segundos, vivemos num devaneio estético — um mundo sem função, sem compromisso, sem resposta. Só o ver pelo ver, o sentir pelo sentir.

Mas o que é esse instante em que o mundo parece se justificar apenas pela sua aparência? O devaneio estético, diferente da contemplação artística dirigida, é um colapso suave do senso prático, um mergulho involuntário no supérfluo que se revela essencial. Não é preciso museu nem pintura famosa: o devaneio estético nasce no inesperado, no cotidiano comovente, no toque leve do real que se mostra de um jeito novo. Ele é uma brecha na funcionalidade das coisas.

A percepção que dança

Ao contrário da percepção utilitária, que busca informações, caminhos e soluções, o devaneio estético nos retira da lógica de uso. Gaston Bachelard, em A Poética do Espaço, já havia intuído que o devaneio é uma espécie de descanso da razão, onde a imaginação ganha sua própria casa. Mas quando esse devaneio é estético, ele não apenas imagina — ele vê, escuta, toca, sente. É uma experiência encarnada, mas sem propósito.

O filósofo francês Merleau-Ponty também pode nos ajudar aqui. Para ele, o corpo é o ponto zero da experiência, e é por ele que o mundo se revela. No devaneio estético, não estamos fora do corpo, mas mais intensamente dentro dele: é o corpo que nos guia até o instante belo, não a mente que o planeja. Por isso, o devaneio estético é sempre uma surpresa. Ele nos encontra — não o contrário.

O inútil que funda o sentido

Vivemos cercados de discursos sobre produtividade, otimização e finalidade. Mas o devaneio estético nos devolve o direito ao inútil. E é aqui que a filosofia pode se rebelar contra sua própria sisudez: pensar o estético como forma de existência sem teleologia, onde o fim não é exterior à própria experiência, mas está nela. Como dizia Oscar Wilde, “toda arte é completamente inútil” — mas é justamente aí que está sua potência.

Em tempos de algoritmos que preveem nosso gosto, o devaneio estético é uma insubmissão silenciosa: ele escapa ao cálculo, ao marketing, à lógica da tendência. Ele é pessoal, íntimo e intransmissível. É o momento em que não nos tornamos consumidores de beleza, mas cúmplices dela.

O ser que se desarma

O devaneio estético exige um certo esvaziamento. Não se entra nele com o peito inflado ou a mente armada. É preciso um tipo de disponibilidade, quase uma ingenuidade. Nisso, ele se aproxima de uma experiência espiritual, ainda que sem dogma. É uma forma de humildade diante do real. Ver a beleza não porque ela se impõe, mas porque nos deixamos afetar.

Nietzsche dizia que só poderíamos criar beleza quando houvesse em nós um caos. O devaneio estético é talvez a dança efêmera desse caos com a forma — um instante onde o mundo se apresenta sem necessidade de explicação, e nós, por um momento, paramos de querer explicá-lo.

Epílogo despretensioso

Talvez o devaneio estético não nos torne mais sábios, nem mais produtivos. Mas ele nos faz lembrar que existe algo em nós que ainda é capaz de maravilhamento. E isso, por si só, já vale o instante. Um instante que, quem sabe, seja o mais verdadeiro dos dias.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Pressão Social


Quando Dizemos “Sim” Sem Saber Por Quê

 

Tem dias que a gente diz "sim" sem pensar. Aceita convites que não quer aceitar, ri de piadas que nem achou graça, compra o que não precisa e posta o que não sente. E quando alguém pergunta “por que você fez isso?”, vem aquele silêncio constrangedor — não sabemos ao certo. Talvez porque “todo mundo faz”, ou porque “ia pegar mal” se não fizéssemos. A verdade é que, muitas vezes, não somos nós quem decidimos: é a pressão social que decide por nós.

 

A força invisível do “todo mundo”

A pressão social é uma espécie de gravidade invisível. Não vemos, mas sentimos. Ela pesa sobre nossas escolhas, nos fazendo mover na direção da maioria. A criança que aprende a se comportar "como os outros" para não ser excluída da turma. O adolescente que muda o jeito de falar, de vestir e até de pensar para se encaixar. O adulto que escolhe a profissão ou a aparência de acordo com expectativas que nem sempre compreende — só obedece.

Essa força foi demonstrada de maneira clássica no Experimento de Conformidade de Solomon Asch, em 1951. No teste, participantes eram convidados a comparar o tamanho de linhas desenhadas em cartões — uma tarefa objetiva e simples. Mas quando todos os outros presentes (atores disfarçados) davam respostas claramente erradas, o participante real frequentemente cedia à maioria, mesmo sabendo que os outros estavam errados. O estudo revelou que mais de 70% dos indivíduos, em algum momento, negaram sua própria percepção apenas para não se opor ao grupo. A lição é perturbadora: a pressão social tem o poder de silenciar até mesmo o que vemos com os nossos próprios olhos.

Décadas depois, em um cenário muito diferente — o das redes sociais —, novos estudos confirmam o poder dessa influência. Pesquisas em neurociência realizadas pela Universidade da Califórnia (UCLA, 2016), com adolescentes, mostraram que as curtidas em fotos ativam no cérebro o sistema de recompensa associado a prazer e aprovação social, o mesmo que responde a estímulos como comida e até drogas. Isso faz com que comportamentos sejam repetidos não porque fazem sentido, mas porque são aprovados pelo grupo. A lógica das redes amplifica o experimento de Asch: agora, em vez de um grupo pequeno numa sala, temos milhões de “atores” moldando nossas decisões, gostos e até valores — com algoritmos no papel de diretores.

Mas o mais inquietante é isso: muitas vezes obedecemos sem saber exatamente o que estamos obedecendo. Como se a vida nos desse um roteiro já pronto, e a gente atuasse sem nunca ter lido as entrelinhas. A pressão social, nesse sentido, é uma obediência sem reflexão.

 

Fazer sem entender: o eclipse da consciência

Há um perigo aí. Quando fazemos algo que não entendemos, abrimos mão de uma parte de nós mesmos. Agir sem consciência é viver em terceira pessoa. Não somos autores, somos personagens. É como se estivéssemos dentro de um teatro, seguindo o que o público quer ver, mesmo sem compreender o enredo.

Nietzsche nos alertou para esse perigo ao criticar o que chamava de “moral de rebanho” — uma moralidade que nasce não da força interior, mas da necessidade de aceitação. Para ele, o homem que vive para agradar os outros abandona sua própria potência criadora, tornando-se um reflexo das vontades alheias. Em vez de afirmar a própria singularidade, repete os gestos dos muitos. Em Assim falou Zaratustra, ele convida à superação desse estado, chamando o indivíduo à responsabilidade por si mesmo, à criação de valores próprios.

 

Pressão ou pertencimento?

É importante notar: a pressão social nem sempre é um vilão. Faz parte da construção da convivência humana. Se cada um seguisse apenas sua vontade, talvez não houvesse sociedade. Mas quando esse pertencimento exige o abandono da reflexão, estamos diante de um problema.

O pensador brasileiro Rubem Alves uma vez escreveu que “obedecer a ordens sem compreender é uma forma de loucura socialmente aceita”. E é isso que a pressão social muitas vezes faz: nos ensina a ser “normais”, mesmo que isso custe a nossa singularidade.

 

Uma saída: escutar o desconforto

Como escapar disso? Talvez o caminho esteja na escuta do desconforto. Sempre que uma escolha não faz sentido, vale perguntar: “Isso é mesmo meu desejo ou estou apenas evitando ser julgado?” Essa pergunta simples pode nos devolver a autoria da própria vida.

Num mundo onde quase tudo nos empurra para o automático, pensar é um ato de resistência. E resistir à pressão social não é virar um eremita antissocial — é apenas aprender a viver com consciência, mesmo dentro do coletivo.

No fim das contas, talvez devêssemos nos perguntar menos “o que é certo fazer?” e mais “por que estou fazendo isso?” Nesse intervalo entre a pergunta e a resposta, nasce a liberdade.


Falsa Consciência

Quando a vida molda o pensamento: Marx, Engels e a consciência que vem do chão

A gente costuma pensar que nossas ideias vêm da nossa cabeça. Que somos livres para acreditar no que quisermos, pensar o que quisermos, votar em quem quisermos, e ponto. Mas será que é bem assim? Será que o que pensamos sobre o mundo — sobre política, trabalho, justiça, sucesso — é tão livre quanto imaginamos?

Marx e Engels diriam que não. Para eles, a nossa consciência — aquilo que achamos que é certo, errado, justo ou natural — nasce da vida concreta que levamos. Ou seja: não é a cabeça que molda o mundo, é o mundo que molda a cabeça. E essa virada muda tudo.

 

O ser social determina a consciência

Imagine duas pessoas: uma que vive em um bairro periférico e acorda às 5 da manhã para pegar três ônibus até o trabalho, e outra que vive num condomínio fechado, com carro, segurança e tempo livre. Agora pense: essas duas pessoas vão enxergar o mundo da mesma forma? Vão entender o que é esforço, mérito, segurança, lazer ou justiça do mesmo jeito?

Para Marx e Engels, a resposta é clara: nossas condições materiais — onde nascemos, o que fazemos, quanto temos, como vivemos — moldam diretamente a maneira como vemos o mundo. É isso que eles chamam de o ser social determina a consciência.

Não somos apenas "indivíduos pensantes", como dizia a filosofia idealista da época. Somos sujeitos inseridos num mundo de relações — especialmente relações de trabalho — e nossa visão de mundo nasce dessa base.

 

A ideologia como véu

Mas tem mais. Marx e Engels também apontam que a consciência que temos muitas vezes é distorcida. Isso acontece porque o sistema em que vivemos (o capitalismo) produz ideias que ajudam a manter tudo como está. É a ideologia.

Exemplo: quando alguém diz que "quem é pobre é porque não se esforça", está reproduzindo uma ideia que esconde a desigualdade estrutural. Ou quando achamos que "empreender é para todos", como se todos tivessem o mesmo ponto de partida.

Essas ideias não são neutras — elas servem para legitimar o que está posto. E muitas vezes a gente acredita nelas sem nem perceber. É o que Marx chamava de falsa consciência: uma visão do mundo que parece natural, mas na verdade é construída para manter a ordem social.

 

Consciência de classe: o despertar

A crítica de Marx e Engels não é só uma denúncia. Ela também é um chamado. Quando o trabalhador começa a entender que sua condição não é culpa sua, mas parte de um sistema desigual, ele começa a desenvolver consciência de classe.

Esse despertar é perigoso para quem está no topo, porque rompe o ciclo da alienação. A consciência deixa de ser apenas um reflexo da vida material e passa a ser uma ferramenta de transformação. Como quem acorda de um sonho — e vê que é possível sonhar diferente, acordado.

 

Em outras palavras...

A consciência, para Marx e Engels, não é um dom divino nem um pensamento livre no ar. É uma construção social, moldada pelas condições materiais. Nossos pensamentos, crenças e valores nascem da vida que levamos, da classe que ocupamos, da posição que temos dentro das relações de produção.

A verdadeira liberdade começa quando a gente entende isso — e pode, enfim, questionar o que parecia natural.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Herege Filosófico

Ensaio filosófico com comentário de Baruch Spinoza

 

Tem gente que nasce com o botão da concordância emperrado. A reunião de condomínio decide, ele discorda. O grupo de amigos entra em consenso, ele puxa assunto contrário. A turma na faculdade aplaude, ele cruza os braços. Às vezes parece só teimosia, birra ou vontade de aparecer — mas, no fundo, há uma força mais estranha e mais antiga agindo ali: a força do herege. E não falo de religião apenas. Ser herege é um modo de estar no mundo. Um modo de não se deixar levar pela maré da maioria, de pagar o preço da solidão em troca da liberdade de pensar por conta própria.

O herege não é o rebelde que se opõe por impulso, nem o crítico de plantão que se alimenta de negatividade. O herege verdadeiro quer compreender, não seguir. E é por isso que incomoda. Ele não destrói dogmas por diversão — mas porque os dogmas, para ele, soam como grades. Onde a maioria vê conforto, ele vê cárcere. Onde a maioria vê verdade, ele vê hábito. Onde a maioria se ajoelha, ele faz perguntas.

Nas relações pessoais, o herege é o que não ri da piada preconceituosa no churrasco. No trabalho, é o que recusa uma ordem que contraria a ética. Na família, é o que escolhe um caminho de vida incompreensível para todos. Ele desorganiza, desestrutura, mas também oxigena. É o que aponta rachaduras num edifício que todos fingiam estar inteiro.

O herege é muitas vezes confundido com o vilão da história. Mas em várias narrativas, se olharmos com mais cuidado, ele é só alguém que viu antes — e pagou por isso. Não é à toa que muitos mártires começaram como hereges, inclusive os fundadores das religiões que hoje os condenariam. Só é possível fundar o novo porque alguém foi queimado por pensar diferente.

Baruch Spinoza, filósofo do século XVII, talvez tenha sido um dos maiores hereges da história — e um dos mais elegantes. Expulso da comunidade judaica de Amsterdã por suas ideias radicais sobre Deus, a natureza e a liberdade, Spinoza acreditava que “a liberdade de filosofar não apenas é compatível com a piedade e com a ordem pública, como é absolutamente necessária para ambas”. Em outras palavras, o herege não destrói o mundo — ele impede que o mundo apodreça de dentro para fora.

Para Spinoza, Deus não é um velho nos céus ditando regras, mas a própria natureza em sua infinita e impessoal potência de existir. E viver de forma herege, nesse sentido, é viver de acordo com a própria razão — não com os medos ou tradições alheias.

 

Num tempo em que tudo parece exigir alinhamento, ser herege pode ser um ato de coragem amorosa. Amor à verdade, à liberdade e à própria consciência. Talvez seja hora de olhar para os hereges do nosso cotidiano com menos desconfiança e mais atenção. Pode ser que eles estejam apenas tentando nos lembrar de algo que esquecemos no fundo de nós mesmos: que pensar por si mesmo ainda é uma das formas mais sublimes de existir.


Cidade de Deus

Entre a cidade dos homens e a cidade do coração: um passeio com Agostinho

Você já sentiu que está vivendo num mundo desordenado demais? Que as notícias parecem repetir o mesmo ciclo de violência, poder e vaidade, como se tudo estivesse de cabeça para baixo? Já pensou que talvez isso não seja apenas um problema político ou social, mas um problema do espírito?

Pois é. Lá no século V, enquanto o Império Romano caía, um pensador africano chamado Agostinho de Hipona escrevia uma obra gigantesca chamada Cidade de Deus. Não era apenas uma resposta à crise de seu tempo, mas um convite para ver o mundo por outro ângulo: o da eternidade.

E por mais distante que isso pareça — em tempo, linguagem e religião —, talvez seja mais atual do que nunca.

 

Duas cidades em tensão: o mundo interior e o mundo exterior

A tese principal de Agostinho é simples e revolucionária: existem duas cidades convivendo dentro da história:

  • A Cidade dos Homens, marcada pelo orgulho, pelo egoísmo, pela busca de glória e poder. É a cidade da política, do império, da vaidade, da corrupção — aquela que vemos nas manchetes.
  • E a Cidade de Deus, feita por aqueles que amam a verdade, a justiça e a humildade. Não é um lugar geográfico, mas um modo de existir — uma cidade invisível, habitada por corações voltados ao bem.

Agostinho diz que ambas estão misturadas no mundo, como o trigo e o joio. E o drama da história humana é justamente esse: viver entre elas, sentindo a tensão, mas mantendo os olhos voltados para o alto — não no sentido de fugir, mas de não se perder.

 

Inovando: a cidade digital e a cidade do silêncio

Agora, se Agostinho estivesse escrevendo hoje, talvez ele falasse da cidade digital — esse espaço onde todo mundo fala, mostra, reage, compete por atenção e "curtidas", como se estivesse num mercado de vaidades.

É a nova versão da Cidade dos Homens: um lugar onde o eu é inflado, onde a pressa substitui a paciência, e a exposição vale mais que a verdade. Mas, mesmo aí, Agostinho diria: a Cidade de Deus ainda pulsa, nos bastidores — no silêncio, na escuta, na compaixão desinteressada.

Ela vive naquele que resiste à lógica da performance. Que ajuda sem filmar. Que pensa antes de reagir. Que olha para o mundo com desejo de justiça, e não com fome de likes.

 

A bússola agostiniana

A Cidade de Deus não é uma utopia política, nem um projeto de governo celestial. Ela é, para Agostinho, um critério ético e espiritual. Um jeito de discernir o que vale e o que não vale, o que permanece e o que passa.

Enquanto a Cidade dos Homens constrói impérios que ruem, a Cidade de Deus forma almas que perduram. E isso vale para qualquer época: Roma caiu. O nosso mundo também cambaleia. Mas, no meio da instabilidade, sempre há quem viva com fé, justiça e amor — os verdadeiros cidadãos dessa cidade sem fronteiras.

 

Plantar a cidade dentro de si

No fim das contas, A Cidade de Deus é menos sobre o Céu e mais sobre como vivemos aqui e agora. Ela propõe que o sentido da história não está nos impérios, mas nas intenções. E que, embora sejamos habitantes do mundo, nossa verdadeira cidadania é moral e espiritual.

Hoje, entre ruídos digitais e crises existenciais, talvez o mais revolucionário seja isso: manter o coração voltado para a eternidade, mesmo enquanto caminha por entre as ruínas do presente.