Vamos
trazer as ideias de Deleuze falarem conosco
A
gente acorda achando que o mundo é o mesmo de ontem. Que o quarto é o mesmo, o
corpo é o mesmo, o rosto no espelho é o mesmo. Mas algo escapa. O cheiro do ar
mudou, o som da rua também. Nem a pele responde igual à água da torneira.
Parece o mesmo, mas não é. Por baixo da aparência da identidade, tudo vibra
como diferença.
É
aqui que Deleuze nos dá um tapa filosófico de leve, quase um sussurro:
O Ser é unívoco, mas a diferença reina.
O
que isso quer dizer? Quer dizer que tudo que existe — de uma barata ao
pensamento mais sofisticado — existe do mesmo modo: simplesmente é. O Ser não
faz acepção. Não há Ser privilegiado, nem hierarquia ontológica. Em outras
palavras: ser filósofo, ser pedra, ser música, ser bactéria... tudo é Ser da
mesma maneira. Mas essa univocidade não produz repetição ou identidade. O que
emerge dessa igualdade de base é exatamente o contrário: uma explosão de
diferenças.
É
curioso: a univocidade, na tradição medieval, significava segurança — um termo
dizia-se da mesma forma de Deus e do mundo, garantindo uma ponte entre o alto e
o baixo. Para Deleuze, essa mesma univocidade é o campo onde tudo pode se
diferenciar sem parar. Não há modelo para nada. Não há arquétipo. Não há
essência. Só diferenças que se dobram, se torcem, se misturam.
A
beleza disso? Nada precisa ser fiel a uma forma ideal. Um pássaro não voa para
ser "o pássaro verdadeiro"; ele voa como pode, no seu jeito singular.
Um humano não fala para se adequar ao verbo divino; ele fala para criar sentido
no mundo que lhe escapa. O real é criação, não cópia. Diferença real, não
identidade vazia.
É
por isso que Deleuze nos faz repensar até mesmo a ideia de erro. No mundo da
univocidade deleuziana, não há erro essencial — há variação, tentativa,
singularização. Quando um aprendiz tropeça nas palavras, não é porque falhou em
imitar o mestre perfeito: é porque ainda está criando a sua própria diferença.
Quando a vida escapa do previsto, não é porque fugiu da verdade ideal — é
porque a diferença nunca repousa.
Esse
pensamento dissolve a obsessão por categorias fixas: o normal, o desviado, o
modelo, a cópia. Tudo está em variação contínua. A filosofia deixa de ser
tribunal e vira laboratório: lugar de experimentar modos de ser, de pensar, de
viver.
No
cotidiano, isso tem um efeito libertador. A angústia de “ser quem eu deveria
ser” perde força. Quem é esse “eu ideal” que nunca chega? Ele não existe. O que
existe sou eu aqui, agora, diferente de mim mesmo a cada instante,
deslizando num Ser que só admite uma regra: tudo deve diferir. Até mesmo o café
da manhã de hoje, que parecia igual ao de ontem, não foi. A colher caiu
diferente. O gosto do pão mudou. A memória que me acompanhou enquanto eu
mastigava veio de outro canto. Pequenas diferenças — mas absolutas. Porque,
como diz Deleuze:
"não
existe diferença de grau sem diferença de natureza."
Assim,
a univocidade não é o lugar da igualdade morta. É o campo de onde brotam
infinitas singularidades, todas autorizadas a serem únicas, sem precisar se
justificar diante de um centro.
No
fundo, talvez a grande mensagem deleuziana seja essa:
o
mundo não nos quer iguais, nem corretos, nem fiéis a modelos. Ele nos quer
múltiplos, criativos, dissonantes, vivos.
Aceitar
a univocidade do Ser é, paradoxalmente, aceitar a diferença em estado puro. E
isso muda tudo: o modo de pensar, de criar, de amar, de ser.
A
Arte: Pintar a Diferença
Se
existe um lugar onde a univocidade deleuziana se encarna fácil é na arte. Não
há uma pintura verdadeira que todas as outras tentam imitar. Não há
"o" romance essencial do qual os outros seriam cópias. Cada obra é um
acontecimento singular, uma dobra irrepetível do Ser.
É
como um quadro de Francis Bacon, cheio de rostos deformados, corpos tortos,
carne viva. Quem olha busca uma figura clássica, uma identidade formal — e não
acha. Ali o Ser é o mesmo que no rosto de qualquer pessoa, mas a diferença
explodiu em formas novas. Não é deformação no sentido de falha; é outra forma
surgindo, como um grito preso na tela.
Na
arte deleuziana, copiar é impossível. Porque o que importa não é o tema (o
rosto, o corpo, o objeto), mas o modo como a diferença se dá ali, única,
irrepetível. Por isso Deleuze amava tanto o cinema de movimento (como o de
Antonioni ou Godard) — porque o tempo nele não é cronológico, mas vivido como
variação pura, dobra de afeto, instante deslocado.
O
artista não é quem revela a essência do mundo — é quem faz a diferença
vibrar no mundo.
A
Política: Contra o Mesmo, pelo Múltiplo
Na
política, a ilusão da identidade também rui. A ideia de um "povo
uno", de uma "nação homogênea", de uma "vontade geral"
é o sonho de quem teme a diferença. Deleuze (e Guattari, seu parceiro
inseparável) sabia disso: onde há poder, há uma máquina tentando capturar a
diferença e forçá-la a caber no molde da unidade.
O
perigo está no desejo de identidade. Ser "como todos", ser
"cidadão modelo", ser "membro produtivo" — tudo isso
disfarça um corte violento nas diferenças reais que pulsam nas vidas concretas:
o migrante, o marginal, o louco, o artista, o inventor de novas formas de
viver.
A
política da univocidade é outra: não busca fundir tudo num só bloco de
igualdade, mas permitir que as diferenças convivam, friccionem, criem novos
arranjos. Deleuze gostava das minorias não porque fossem
"coitadinhas", mas porque toda diferença tem potência revolucionária.
Uma nova maneira de amar, de morar, de falar, de se relacionar é uma linha de
fuga contra a máquina de fazer iguais.
Política
não é a arte do consenso. É o campo das diferenças ativas, em tensão. É um
corpo múltiplo, rizomático, sem centro fixo.
O
Corpo: Campo de Transformações
E
o corpo? O corpo talvez seja o lugar mais próximo onde sentimos essa filosofia
na pele — literalmente.
O
corpo não é identidade. Não é estrutura fixa. Ele muda com o tempo, com o
toque, com a comida, com o sono, com a dor. É um campo de forças, de
intensidades. Um corpo nunca está pronto; ele está sempre se fazendo.
Quando
dançamos, sentimos isso: o corpo acha ritmos estranhos, posturas novas,
movimentos que não estavam "programados". No sexo também: não há
mapa, há invenção viva do contato. Na doença, o corpo cria zonas imprevistas de
afeto, cansaço, febre — uma nova maneira de ser carne no mundo.
Deleuze
via o corpo como máquina desejante, produtora de realidades, e não como
um invólucro passivo da alma. O corpo é laboratório de diferença. Sua
univocidade é total: todo corpo é corpo do mesmo Ser — mas nenhum corpo é
idêntico a outro, nem a si mesmo de ontem.
O
corpo é multiplicidade em estado puro.
Fechamento:
Viver a Diferença
No
fim, Deleuze nos convida não a buscar quem somos — mas a inventar quem podemos
ser. O "eu" não é identidade profunda, mas diferença emergente. Ser
fiel a si mesmo não é repetir uma essência; é aceitar a aventura de se
transformar sem cessar.
Arte,
política, corpo — tudo é campo de variação. Tudo é espaço de diferença. A
univocidade do Ser não impede nada disso — ela garante. Porque só quando o Ser
é o mesmo para tudo é que ele pode se dobrar de infinitas maneiras.
Talvez
o maior erro da modernidade tenha sido temer a diferença: no nome da ordem, da
razão, da pureza. Deleuze propõe o contrário: afirmar a diferença sem medo,
deixar o real vibrar no múltiplo.
O
mundo não quer que sejamos corretos. Quer que sejamos novos.