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terça-feira, 17 de junho de 2025

Ser Excêntrico

...é ser fora do eixo?

Que palavra boa, essa: excêntrico. Literalmente, do grego ekkentros, quer dizer “fora do centro”. E talvez isso já diga quase tudo.

Ser excêntrico é não girar no eixo dos outros. É não se preocupar se o bonde segue para a direita enquanto você caminha para a esquerda assobiando uma música esquecida. É usar uma boina vermelha num mundo de bonés pretos, comer bergamota no cinema, chamar a atenção sem querer ou querendo muito — pouco importa.

Excêntrico é aquele vizinho que cria galinhas no apartamento e lhes dá nomes de filósofos. É a colega de trabalho que prefere escrever seus relatórios à mão, com caneta tinteiro, no meio da era digital. É o tio que guarda canecas rachadas porque “a imperfeição tem charme”.

Mas o excêntrico não é necessariamente um extravagante. Nem sempre salta aos olhos. Às vezes é só alguém que recusa o script silenciosamente: não usa redes sociais, não liga para séries do momento, não troca o celular há cinco anos. E vive bem assim.

A sociedade moderna adora sugerir que há um “centro” de comportamento: comprar isso, vestir aquilo, sonhar com aquilo outro. Mas o excêntrico é um lembrete vivo de que esse centro é apenas uma construção — e pode ser abandonado sem culpa.

O filósofo francês Michel Foucault diria que o excêntrico encarna a “diferença” que resiste às normalizações do poder. Ele lembra que a vida pode ser outra coisa — um desvio alegre, um ruído num coro afinado demais.

No fundo, toda criança é um pouco excêntrica. Ela inventa brincadeiras sem sentido, fala sozinha com objetos, mistura real e imaginário sem pedir licença. Só depois é que ensinamos a ela que há um "centro" — horários, modos, jeitos, expectativas.

Talvez ser excêntrico, no fundo, seja uma forma de não esquecer essa infância secreta que mora em todo mundo.

E quem sabe o mundo precise de mais excêntricos — esses seres estranhos que não levam tão a sério o que deveria ser levado muito a sério.


Eu Social

Vivemos em uma sociedade que nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. Desde pequenos, escutamos frases como “isso não se faz”, “comporte-se”, “as pessoas estão olhando”. Antes de desenvolvermos uma identidade individual sólida, já aprendemos a nos ajustar, a ser “alguém” para os outros. É nesse jogo entre o que sentimos internamente e o que projetamos externamente que nasce uma figura essencial para a convivência humana: o eu social.

Outro dia, eu estava no mercado e, sem pensar muito, dei um sorriso automático para a moça do caixa. Não era um sorriso de alegria, nem mesmo de simpatia — era quase um reflexo social. Como quem diz: “estou sendo educado, veja só como funciono bem nesse ambiente coletivo.” E é aí que percebi que aquele gesto não era exatamente meu — era do meu eu social.

O “eu social” é esse personagem que a gente veste todos os dias. É o eu que sabe o que dizer na entrevista de emprego, que segura a piada inadequada na reunião, que disfarça o tédio numa festa porque "é bom estar ali", que troca de voz no telefone com o banco, e até que se adapta ao grupo de WhatsApp da família para não causar ruído.

O filósofo e sociólogo George Herbert Mead nos ajuda a entender melhor essa construção. Para ele, o “eu” se forma justamente através da interação com os outros. Mead diferencia o “I” (o eu espontâneo, criativo, que reage) do “Me” (o eu social, moldado pela expectativa alheia). Segundo ele, o “Me” é a parte de nós que internaliza as normas sociais, enquanto o “I” é a resposta individual a essas normas. Assim, não nascemos prontos: nos tornamos alguém no espelho das relações sociais.

No transporte público, vejo pessoas mudarem de postura conforme quem senta ao lado. No trabalho, alguém que parecia tão solto na festa da firma se transforma num robô funcional durante a semana. Em casa, somos filhos, pais, parceiros. Na rua, somos cidadãos, vizinhos, desconhecidos. É como se o “eu” trocasse de roupa cada vez que atravessa uma porta.

O sociólogo Erving Goffman, no livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, descreve a vida como um teatro. Ele sugere que todos nós, ao interagir socialmente, estamos encenando. Criamos máscaras, papéis, palcos e bastidores. E isso não é hipocrisia — é sobrevivência simbólica. O problema começa quando a gente não consegue mais sair do personagem.

Será que sabemos quem somos fora do palco? Quando não estamos agradando, respondendo expectativas, pedindo aprovação? Às vezes, penso que o “eu social” é como uma roupa de festa que usamos o tempo todo, mesmo quando tudo que queríamos era ficar de pijama.

Mas também aprendi que o eu social não precisa ser um inimigo. Ele é a ponte entre o que sou e o mundo que me cerca. A chave é não esquecer que ele é só uma parte — útil, sim — mas não total. Saber quando é hora de representá-lo… e quando é hora de deixá-lo sair de cena.


segunda-feira, 16 de junho de 2025

Idiota da Aldeia



Dia destes estava lendo uma postagem no Instagram de uma palestra de Umberto Eco e me ocorreu escrever sobre o tema, vou deixar o link para lerem a publicação:

https://www.instagram.com/explore/tags/aldeia/

Antigamente o idiota da aldeia ficava restrito ao seu círculo de vinte ou trinta conhecidos. Falava besteiras na taberna, confundia datas na praça, contava histórias tortas para as crianças, e todos sabiam que aquilo era parte do folclore local — uma figura inofensiva ou, no máximo, irritante. Mas Umberto Eco, em uma célebre palestra na Universidade de Turim em 2015, ao receber o título de doutor honoris causa, alertou:

“As redes sociais deram o direito de fala a legiões de imbecis que antes só falavam no bar e depois de um copo de vinho, sem prejudicar a coletividade. Eles eram rapidamente calados, enquanto agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel.”

O drama moderno, segundo Eco, é que esse idiota ganhou um microfone global — e ninguém mais distingue sua fala da voz da razão. As redes sociais, ironicamente chamadas de “plataformas”, deram a ele um púlpito.

Mas antes de julgá-lo, precisamos reconhecer um segredo incômodo: o idiota da aldeia também existe em nós.

A ideia de "idiota" não é apenas um personagem exterior, grotesco e reconhecível. Ele é também aquela voz interna que opina sem saber, compartilha sem ler, acredita no que deseja e não no que é. Por vezes, é o idiota da aldeia quem responde nos grupos de WhatsApp da família, quem comenta com raiva em fóruns, quem dá conselhos não solicitados no elevador. O empoderamento desse idiota não é um acidente tecnológico; é o sintoma de uma velha condição humana: o amor à própria ignorância.

O que Eco parece sugerir (mas poucos ousam explorar) é que o problema não é a ignorância em si — afinal, somos todos ignorantes em quase tudo — mas a soberania concedida à ignorância opinativa. Antigamente o idiota da aldeia não era ouvido; agora ele acredita ser a própria aldeia.

O Novo Teatro da Verdade

Platão, no século IV a.C., advertia sobre a fragilidade da opinião sem conhecimento, a famosa doxa que se veste de sabedoria, mas é espuma vazia. Mas nem ele previu o Instagram.

Hoje, não é preciso aprender: basta parecer saber. O empoderamento do idiota não é apenas o direito de falar, mas o direito de soar importante, de ter seguidores, de ser citado, de fazer barulho. Mais: é o direito de cancelar quem sabe mais, de ofender sem custo, de confundir sem responsabilidade. O idiota da aldeia virou curador de museu, crítico literário, filósofo instantâneo, cientista do próprio umbigo.

E nós — os supostos lúcidos — não escapamos ilesos. Pois ao combatê-lo, ao zombar dele, ao denunciá-lo sem parar, damos a ele o alimento que deseja: atenção.

Segundo Nelson Rodrigues (1912 – 1980): “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos.”

O Idiota também é uma Função

Mas há uma ideia mais profunda e desconcertante aqui: o idiota da aldeia é necessário. Ele cumpre uma função social que talvez tenhamos esquecido. Ele é o espelho deformante que nos lembra o que não queremos ser — ou o que já somos sem perceber.

O idiota é o fermento do ceticismo coletivo. Sua fala desvairada obriga a reflexão dos atentos, o cuidado dos mestres, a paciência dos sábios. Sem ele, a inteligência dorme. Como dizia o filósofo Paul Valéry: "A estupidez não se improvisa; é uma obra de arte." O idiota nos obriga à vigilância.

Talvez seja este o paradoxo mais incômodo: o empoderamento do idiota é também o empoderamento da crítica. Ele não cala o pensamento — obriga-o a se justificar.

A Aldeia Somos Nós

Há uma solução elegante e trágica para o dilema de Eco: reconhecer que a aldeia digital não tem mais centro nem periferia. O idiota já não é uma exceção; ele é uma probabilidade distribuída entre todos. Não há um "ele" e um "nós". A internet tornou a aldeia um espelho de mil faces, e cada um de nós já foi — ou será — o idiota da vez.

Por isso, o verdadeiro risco não é o idiota que fala demais — é o sábio que se cala por cansaço.

O empoderamento do idiota da aldeia, afinal, não é uma crise da estupidez — é uma crise da escuta. Quem ainda escuta com cuidado? Quem ainda separa o ruído da música? Quem ainda suspeita de si mesmo antes de opinar? Eco nos alertou para o barulho, mas talvez o problema mais grave seja o silêncio dos que poderiam dizer algo real e útil — e se retraem.

Talvez o maior idiota da aldeia seja aquele que desistiu de pensar. Hoje percebemos que ele não estava tão errado assim. Ou estava?


Obsessão e Filosofia

Vamos das uma olhada em quando a alma fecha os olhos...

Tem dias em que a gente acorda com uma única ideia — um medo recorrente, um desejo sem paz, uma lembrança que insiste em voltar. E então o pensamento gira em torno disso, como mosca em lâmpada, sem saída. O mundo se estreita. O real perde a força e sobra apenas aquilo: a obsessão. Pequena ou gigante, disfarçada de cuidado ou de amor, de zelo ou de perfeccionismo.

No cotidiano, ela é quase banal: quem nunca voltou três vezes para checar se trancou a porta? Quem nunca ficou preso num e-mail mal escrito ou numa mensagem não respondida? Há quem confunda obsessão com persistência — e há quem ache bonito ser obcecado por metas e resultados. No fundo, talvez a obsessão seja só a máscara ocidental de um medo profundo de perder o controle.

Sigmund Freud foi dos primeiros a perceber que a obsessão mora no inconsciente como sintoma: um sinal invertido de desejo reprimido. Para ele, os atos obsessivos — lavar as mãos sem parar, repetir frases mentalmente, ordenar objetos — são defesas contra algo insuportável. O sujeito obcecado tenta controlar o mundo externo porque não suporta o tumulto do mundo interno. Em "O Caso do Homem dos Ratos", Freud mostrou como a obsessão cria um labirinto de rituais inúteis, mas indispensáveis para manter o sujeito em pé. Sem eles, o medo oculto romperia a consciência.

Mas nem toda obsessão se revela como doença clínica. Jacques Lacan, leitor atento de Freud, foi mais longe: a obsessão seria um modo específico de se relacionar com o desejo — um desejo que nunca quer ser satisfeito. O obsessivo, para Lacan, não deseja realmente o objeto que persegue; deseja desejar. Por isso nunca alcança. Sua angústia é estrutural: ele gira em torno do vazio, alimentando uma falta que o define. No fundo, ele quer manter o objeto à distância, como o ciumento que teme perder justamente o que não quer possuir de fato.

Simone Weil, mística e filósofa singular, trouxe uma perspectiva rara: para ela, a obsessão é uma forma de desatenção ao real. Em "A Gravidade e a Graça", ela diz que a alma obcecada está tão fixada em si mesma — em seu desejo, em sua dor — que não consegue ver o outro, nem o mundo, nem Deus. O remédio seria o oposto: a atenção pura, capaz de se abrir ao que é, sem querer tomar ou modificar. A obsessão fecha os olhos da alma; a atenção os reabre.

Esse movimento — fechar-se e abrir-se — é o drama da vida comum. O estudante que não consegue largar uma prova malfeita; o apaixonado que revive cem vezes o fim do namoro; o trabalhador que acorda pensando no chefe e dorme imaginando planilhas. A obsessão é um monólogo interior interminável — um filme em looping que suga a energia vital.

Mas há quem a transforme. Os artistas obsessivos — Kafka, Van Gogh, Glenn Gould — criaram beleza do seu tormento repetitivo. A obsessão pode ser poço sem fundo, mas também mina de ouro. Gaston Bachelard, em "A Poética do Devaneio", lembra: todo criador é, em parte, um obcecado pelo mesmo tema, pela mesma imagem fundante.

Mesmo Schopenhauer, que via o desejo como prisão eterna, admitia um caminho de escape: a contemplação estética — esse raro instante em que o querer cessa e a beleza do mundo se revela sem exigências. Talvez aí a obsessão se dissolva por um momento.

Mas é N. Sri Ram, em "A Sabedoria da Vida", que nos dá um conselho simples: toda fixação mental nos rouba a liberdade de ver o novo. A mente obcecada não aprende, não percebe, não muda. Para ele, a alma livre é aquela que mantém o olhar aberto, curioso, disponível.

Talvez o segredo seja esse: não eliminar a obsessão — ela é humana demais para desaparecer — mas aprender a reconhecê-la como visita incômoda e temporária. Dar-lhe um lugar na sala, ouvir o que ela murmura... e depois abrir a janela. Porque o mundo lá fora continua imenso, cheio de cores, de ruídos, de vida — muito além do círculo estreito da ideia fixa.


domingo, 15 de junho de 2025

Univocidade e Singularidades


Vamos trazer as ideias de Deleuze falarem conosco

A gente acorda achando que o mundo é o mesmo de ontem. Que o quarto é o mesmo, o corpo é o mesmo, o rosto no espelho é o mesmo. Mas algo escapa. O cheiro do ar mudou, o som da rua também. Nem a pele responde igual à água da torneira. Parece o mesmo, mas não é. Por baixo da aparência da identidade, tudo vibra como diferença.

É aqui que Deleuze nos dá um tapa filosófico de leve, quase um sussurro:
O Ser é unívoco, mas a diferença reina.

O que isso quer dizer? Quer dizer que tudo que existe — de uma barata ao pensamento mais sofisticado — existe do mesmo modo: simplesmente é. O Ser não faz acepção. Não há Ser privilegiado, nem hierarquia ontológica. Em outras palavras: ser filósofo, ser pedra, ser música, ser bactéria... tudo é Ser da mesma maneira. Mas essa univocidade não produz repetição ou identidade. O que emerge dessa igualdade de base é exatamente o contrário: uma explosão de diferenças.

É curioso: a univocidade, na tradição medieval, significava segurança — um termo dizia-se da mesma forma de Deus e do mundo, garantindo uma ponte entre o alto e o baixo. Para Deleuze, essa mesma univocidade é o campo onde tudo pode se diferenciar sem parar. Não há modelo para nada. Não há arquétipo. Não há essência. Só diferenças que se dobram, se torcem, se misturam.

A beleza disso? Nada precisa ser fiel a uma forma ideal. Um pássaro não voa para ser "o pássaro verdadeiro"; ele voa como pode, no seu jeito singular. Um humano não fala para se adequar ao verbo divino; ele fala para criar sentido no mundo que lhe escapa. O real é criação, não cópia. Diferença real, não identidade vazia.

É por isso que Deleuze nos faz repensar até mesmo a ideia de erro. No mundo da univocidade deleuziana, não há erro essencial — há variação, tentativa, singularização. Quando um aprendiz tropeça nas palavras, não é porque falhou em imitar o mestre perfeito: é porque ainda está criando a sua própria diferença. Quando a vida escapa do previsto, não é porque fugiu da verdade ideal — é porque a diferença nunca repousa.

Esse pensamento dissolve a obsessão por categorias fixas: o normal, o desviado, o modelo, a cópia. Tudo está em variação contínua. A filosofia deixa de ser tribunal e vira laboratório: lugar de experimentar modos de ser, de pensar, de viver.

No cotidiano, isso tem um efeito libertador. A angústia de “ser quem eu deveria ser” perde força. Quem é esse “eu ideal” que nunca chega? Ele não existe. O que existe sou eu aqui, agora, diferente de mim mesmo a cada instante, deslizando num Ser que só admite uma regra: tudo deve diferir. Até mesmo o café da manhã de hoje, que parecia igual ao de ontem, não foi. A colher caiu diferente. O gosto do pão mudou. A memória que me acompanhou enquanto eu mastigava veio de outro canto. Pequenas diferenças — mas absolutas. Porque, como diz Deleuze:

"não existe diferença de grau sem diferença de natureza."

Assim, a univocidade não é o lugar da igualdade morta. É o campo de onde brotam infinitas singularidades, todas autorizadas a serem únicas, sem precisar se justificar diante de um centro.

No fundo, talvez a grande mensagem deleuziana seja essa:

o mundo não nos quer iguais, nem corretos, nem fiéis a modelos. Ele nos quer múltiplos, criativos, dissonantes, vivos.

Aceitar a univocidade do Ser é, paradoxalmente, aceitar a diferença em estado puro. E isso muda tudo: o modo de pensar, de criar, de amar, de ser.

A Arte: Pintar a Diferença

Se existe um lugar onde a univocidade deleuziana se encarna fácil é na arte. Não há uma pintura verdadeira que todas as outras tentam imitar. Não há "o" romance essencial do qual os outros seriam cópias. Cada obra é um acontecimento singular, uma dobra irrepetível do Ser.

É como um quadro de Francis Bacon, cheio de rostos deformados, corpos tortos, carne viva. Quem olha busca uma figura clássica, uma identidade formal — e não acha. Ali o Ser é o mesmo que no rosto de qualquer pessoa, mas a diferença explodiu em formas novas. Não é deformação no sentido de falha; é outra forma surgindo, como um grito preso na tela.

Na arte deleuziana, copiar é impossível. Porque o que importa não é o tema (o rosto, o corpo, o objeto), mas o modo como a diferença se dá ali, única, irrepetível. Por isso Deleuze amava tanto o cinema de movimento (como o de Antonioni ou Godard) — porque o tempo nele não é cronológico, mas vivido como variação pura, dobra de afeto, instante deslocado.

O artista não é quem revela a essência do mundo — é quem faz a diferença vibrar no mundo.

A Política: Contra o Mesmo, pelo Múltiplo

Na política, a ilusão da identidade também rui. A ideia de um "povo uno", de uma "nação homogênea", de uma "vontade geral" é o sonho de quem teme a diferença. Deleuze (e Guattari, seu parceiro inseparável) sabia disso: onde há poder, há uma máquina tentando capturar a diferença e forçá-la a caber no molde da unidade.

O perigo está no desejo de identidade. Ser "como todos", ser "cidadão modelo", ser "membro produtivo" — tudo isso disfarça um corte violento nas diferenças reais que pulsam nas vidas concretas: o migrante, o marginal, o louco, o artista, o inventor de novas formas de viver.

A política da univocidade é outra: não busca fundir tudo num só bloco de igualdade, mas permitir que as diferenças convivam, friccionem, criem novos arranjos. Deleuze gostava das minorias não porque fossem "coitadinhas", mas porque toda diferença tem potência revolucionária. Uma nova maneira de amar, de morar, de falar, de se relacionar é uma linha de fuga contra a máquina de fazer iguais.

Política não é a arte do consenso. É o campo das diferenças ativas, em tensão. É um corpo múltiplo, rizomático, sem centro fixo.

O Corpo: Campo de Transformações

E o corpo? O corpo talvez seja o lugar mais próximo onde sentimos essa filosofia na pele — literalmente.

O corpo não é identidade. Não é estrutura fixa. Ele muda com o tempo, com o toque, com a comida, com o sono, com a dor. É um campo de forças, de intensidades. Um corpo nunca está pronto; ele está sempre se fazendo.

Quando dançamos, sentimos isso: o corpo acha ritmos estranhos, posturas novas, movimentos que não estavam "programados". No sexo também: não há mapa, há invenção viva do contato. Na doença, o corpo cria zonas imprevistas de afeto, cansaço, febre — uma nova maneira de ser carne no mundo.

Deleuze via o corpo como máquina desejante, produtora de realidades, e não como um invólucro passivo da alma. O corpo é laboratório de diferença. Sua univocidade é total: todo corpo é corpo do mesmo Ser — mas nenhum corpo é idêntico a outro, nem a si mesmo de ontem.

O corpo é multiplicidade em estado puro.

Fechamento: Viver a Diferença

No fim, Deleuze nos convida não a buscar quem somos — mas a inventar quem podemos ser. O "eu" não é identidade profunda, mas diferença emergente. Ser fiel a si mesmo não é repetir uma essência; é aceitar a aventura de se transformar sem cessar.

Arte, política, corpo — tudo é campo de variação. Tudo é espaço de diferença. A univocidade do Ser não impede nada disso — ela garante. Porque só quando o Ser é o mesmo para tudo é que ele pode se dobrar de infinitas maneiras.

Talvez o maior erro da modernidade tenha sido temer a diferença: no nome da ordem, da razão, da pureza. Deleuze propõe o contrário: afirmar a diferença sem medo, deixar o real vibrar no múltiplo.

O mundo não quer que sejamos corretos. Quer que sejamos novos.

sábado, 14 de junho de 2025

Solidariedade Dukerniana

Sabe quando você entra numa padaria e sem perceber forma uma fila atrás de quem chegou primeiro? Ou quando pega um ônibus e mesmo com sono cede o lugar para uma senhora? Ou ainda quando ninguém te conhece no trabalho novo, mas mesmo assim todos já respeitam sua função, sem nem saber quem você é? Pois é. Isso é solidariedade no sentido dukerniano.

Émile Durkheim dizia que as sociedades se mantêm coesas graças a formas de solidariedade. Não é só empatia, nem compaixão. Para ele, "solidariedade" é o cimento invisível que mantém a ordem social. E existem duas formas disso acontecer: solidariedade mecânica e solidariedade orgânica.

A solidariedade mecânica é típica das sociedades simples, tradicionais, onde todo mundo pensa mais ou menos igual, vive de forma parecida, segue os mesmos costumes — como uma pequena vila onde todos se conhecem pelo nome e ninguém precisa de crachá. É o tipo de vínculo que une pessoas pela semelhança.

Já a solidariedade orgânica é própria das sociedades modernas e complexas — como a cidade grande, onde ninguém sabe quem é o outro, mas todo mundo depende de todo mundo. O padeiro não faz sua roupa; o alfaiate não planta seu próprio arroz; o engenheiro não conserta o encanamento da própria casa. Vivemos ligados não pela semelhança, mas pela diferença funcional. Cada um faz uma parte e confia que o outro fará a dele.

Se você vai ao supermercado e compra um pacote de arroz, nem imagina quem colheu, processou, transportou, empacotou. Mas sem todos eles — desconhecidos, anônimos, invisíveis — você passaria fome. Essa é a solidariedade dukerniana que sustenta nossa vida urbana sem que a gente perceba.

É interessante: quanto mais complexa a sociedade, mais "desconhecidos" garantem nossa sobrevivência. Isso gera uma confiança sistêmica — não no indivíduo concreto, mas no papel social que ele ocupa.

Durkheim alertava: se essa solidariedade enfraquece, surge a anomia — um estado de desorientação social, onde as regras perdem o sentido e as pessoas não sabem mais como agir. Não é raro sentir isso em grandes crises, como pandemias ou guerras, quando o fio invisível da confiança social ameaça se romper.

No fundo, até quando você reclama de um atraso do motoboy ou de um mau atendimento no banco, está invocando essa solidariedade dukerniana: você espera que cada peça do sistema funcione sem precisar supervisioná-la.

Como comentou o sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil temos um costume forte de "personalizar" as relações — preferimos confiar em pessoas, não em funções. Talvez por isso a solidariedade orgânica aqui tenha suas falhas e a "mecânica" ainda resista em laços familiares, amizades, favores.

Mas no trânsito, na fila, no mercado, no aplicativo, no elevador… ela age em silêncio. Como o ar que respiramos sem notar. 

Arbitrário e Conjectural

O que é arbitrário, o que é conjetural: entre o acaso e a hipótese

Um café, uma dúvida

Imagine que estamos tomando um café em uma tarde qualquer, e você me pergunta: “Por que a bandeira do Japão tem um círculo vermelho no meio?” Poderíamos procurar a resposta no Google. Mas antes disso, eu poderia te dizer: “Talvez seja arbitrário.” Ou então: “Talvez seja conjetural.” E, de repente, nos damos conta de que essas duas palavrinhas — arbitrário e conjetural — aparecem por toda parte: na arte, na ciência, na política, na vida cotidiana. E o que elas realmente querem dizer? Mais ainda: o que dizem sobre nós?

O arbitrário: quando a razão se cala e o costume reina

O arbitrário nasce onde a necessidade não reina. Quando algo poderia ser diferente sem afetar nada de essencial, estamos no território do arbitrário. A cor do semáforo que significa "pare" poderia ser azul, não vermelha. O lado da rua onde dirigimos poderia ser o oposto. O gênero gramatical de "mesa" poderia ser masculino, e nada no universo ruiria.

O linguista Ferdinand de Saussure foi quem chamou a atenção para isso no campo da linguagem: a relação entre o significante e o significado é arbitrária. A palavra "árvore" não tem nada de essencialmente arbóreo. Essa arbitrariedade é estruturante: sustenta sistemas inteiros que funcionam apesar de não terem uma justificação racional intrínseca.

Mas há um paradoxo aqui: o arbitrário, quando repetido, torna-se tradição — e a tradição, por vezes, se mascara de necessidade. O que começa como escolha gratuita pode se tornar norma sagrada. Assim, o arbitrário se disfarça de destino.

O conjetural: quando o saber se aventura

Já o conjetural é filho da incerteza e da curiosidade. Nasce quando não sabemos, mas suspeitamos. Quando não vemos o todo, mas tentamos espiar pelas frestas. A conjetura é o tipo de saber que se alimenta da dúvida, mas não paralisa diante dela.

O historiador Carlo Ginzburg cunhou a expressão "paradigma indiciário" para descrever uma forma conjetural de conhecimento. Ele se refere à maneira como caçadores, médicos e detetives constroem hipóteses a partir de sinais, traços, pistas — aquilo que não fala diretamente, mas insinua. No conjetural, o raciocínio é uma arte de costurar o ausente com o presente.

Na ciência, hipóteses são conjeturas sistematizadas. No cotidiano, usamos o conjetural para prever reações alheias, interpretar sonhos, ou tentar entender o que o silêncio de alguém está dizendo. A conjetura é a ponte entre o vazio do não-saber e a ousadia de tentar.

Entre os dois: liberdade e responsabilidade

Arbitrário e conjetural se tocam, mas não se confundem. Ambos operam fora da certeza: o primeiro, por desprezo à razão; o segundo, por falta de dados. Um ignora as razões; o outro a busca. Um é decisão sem critério; o outro é tentativa de critério sem certeza.

No campo da ética, por exemplo, a distinção entre os dois pode ser crucial. Uma norma pode ser arbitrária — imposta pelo poder sem justificativa — ou conjetural — proposta como uma melhor hipótese diante da complexidade do real. A diferença entre uma lei injusta e uma lei provisória está nesse hiato.

Aqui, o pensamento crítico precisa ser vigilante: questionar o que parece necessário (mas é só arbitrário) e aceitar a provisoriedade do que parece verdadeiro (mas é só conjetural). Entre os dois extremos, habitamos o terreno da liberdade responsável.

Viver é arbitrar e conjeturar

No fim, a vida talvez seja isso: uma dança entre o arbitrário e o conjetural. Escolhas que poderiam ser outras, e hipóteses que talvez estejam erradas. Vivemos entre símbolos criados sem razão e verdades buscadas sem garantia. E, nesse jogo, o que importa não é fugir da incerteza, mas aprender a habitá-la com elegância — talvez com um bom café na mão.

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Noção do Apropriado

Entre o Instante e a Medida

Tem dias em que a gente escolhe calar na hora certa. Ou então diz a palavra exata que muda o rumo de uma conversa inteira. Ninguém ensina isso. Não vem no manual da vida adulta, nem no tutorial das redes sociais, nem no Código Civil. É uma percepção fina — como quando alguém sabe exatamente quando levantar da mesa, sem ser cedo demais nem tarde demais. Isso é a noção do apropriado: um saber que flutua entre o instinto e a medida, entre o corpo e o pensamento, entre o mundo e o instante.

Mas o que é, afinal, o “apropriado”? Não é o mesmo que o “correto” — que segue regra fixa, código, cartilha. Nem é o “conveniente”, que serve a um interesse esperto. O apropriado é mais sutil. Ele se move como um peixe sob a água: não se vê direito, mas percebe-se pela leveza da resistência. Apropriado é o gesto que cabe no espaço do instante. Como aquele olhar que diz mais que um discurso inteiro.

Num casamento, por exemplo, é apropriado que os noivos sorriam — mas se choram discretamente de emoção, ninguém acha errado. Pelo contrário: parece mais verdadeiro. Numa aula, é apropriado perguntar ao professor — mas há momentos em que é mais sábio calar e pensar sozinho. O apropriado não mora na regra; mora no ritmo secreto das situações.

Aristóteles já dizia que a virtude é o meio-termo entre dois excessos. Mas o meio-termo não é um ponto fixo: ele oscila conforme o vento do instante. É nesse espaço que brota a noção do apropriado — como um cálculo rápido, quase instintivo, do que convém àquele recorte de tempo e lugar. Um aluno pergunta demais na aula: é curioso ou inconveniente? Depende do dia, da paciência do professor, do cansaço da turma. O apropriado nunca é matemático; é sempre dramático.

O filósofo japonês Kitarō Nishida escreveu que a verdadeira ação surge da "intuição do campo puro da experiência". Uma percepção direta, sem intermediários, daquilo que o momento exige. Talvez a noção do apropriado seja isso: uma habilidade que se aprende vivendo, errando, escutando o não-dito das coisas. Não dá para ensinar no papel; ensina-se no olhar trocado, na pausa inesperada.

Quem entendeu bem esse jogo foi Confúcio. Na China do século V a.C., ele dizia que o homem nobre (junzi) é aquele que sabe a hora certa de tudo: do sorriso, da fala, do gesto. Nem antes, nem depois. Para ele, a ética não era uma coleção de proibições, mas uma arte da adequação. A virtude estava na harmonia do momento com a ação. Para Confúcio, até o luto tinha tempo certo: três anos de tristeza pública eram apropriados para um filho que perde o pai. Mais do que isso, virava peso para os vivos; menos do que isso, parecia indiferença. O tempo — veja só — também entra na noção do apropriado.

Já na filosofia ocidental, Henri Bergson falava da importância do “instante criador” — um momento em que a consciência escapa das repetições automáticas e capta o novo que brota do real. O apropriado, talvez, seja isso: uma interrupção criativa na rotina, um lampejo de adequação viva. Não é obedecer cegamente uma norma, mas inventar uma solução justa para um problema único.

A história está cheia de cenas em que o apropriado salvou o dia — ou o perdeu. Alexandre, o Grande, ao cortar o nó górdio com a espada, desafiou o costume de desatar pacientemente o nó, como exigiam os ritos locais. Foi apropriado? Para os gregos, sim: trouxe uma solução genial para o impasse e reforçou sua imagem de herói invencível. Para os frígios, talvez não — violou um símbolo religioso. O apropriado, veja bem, também depende do ponto de vista cultural.

Há também o caso célebre de Sócrates, que se recusou a fugir da prisão mesmo tendo chance. Para ele, era apropriado aceitar a condenação injusta e morrer de acordo com suas ideias. Para seus amigos desesperados, seria apropriado escapar e continuar ensinando. Quem estava certo? Depende de que tipo de adequação se busca: à cidade ou à consciência?

Na vida comum, esse dilema aparece quando escolhemos entre dizer a verdade dura a um amigo ou calar por compaixão. O que é mais apropriado: o real ou o delicado? Não há resposta fixa. O instante é o juiz.

Mas o mundo moderno, ansioso e acelerado, parece perder essa medida. Como disse o filósofo brasileiro Vladimir Safatle, vivemos tempos em que as emoções e expressões públicas viraram espetáculo — e o apropriado se confunde com o que “pega bem” na rede social. O resultado? O gesto perde seu frescor, vira pose. A noção do apropriado — aquela velha dança do instante — se transforma em cálculo cínico.

Por outro lado, também há os sem-noção — gente que ignora o apropriado e diz tudo, faz tudo, sem filtro, como se o mundo fosse uma lousa em branco para seu espetáculo pessoal. Mas esses não entendem que o apropriado não é limitação: é arte. A arte de dar forma ao instante.

Talvez a noção do apropriado seja o que nos salva da brutalidade e da rigidez. Ela é uma ética silenciosa, que não se escreve nos códigos da lei nem nos manuais de conduta, mas se manifesta no sorriso justo, no comentário bem medido, no silêncio necessário. É a sabedoria do instante — mais velha que a filosofia, mais viva que qualquer doutrina.

No fundo, é uma dança entre o eu e o mundo. Dança que ninguém ensina, mas que todo mundo pressente.


Estética Seletiva

O Belo Não Tem Cheiro (Ou Tem?)

Tem dias que a gente morde um pedaço de pão fresco e pensa: “Que delícia!” — mas dificilmente solta um: “Que coisa bela!”. Da mesma forma, um perfume pode nos fazer fechar os olhos de prazer, mas não costumamos dizer que ele é “belo” — dizemos que é “cheiroso”, “marcante”, “sedutor”. Engraçado: parece que, sem perceber, reservamos a palavra belo para certos sentidos e não para outros. Por quê?

Talvez porque, na cultura ocidental, o belo sempre foi coisa de olho e ouvido. Desde os gregos, passando por Kant, os sentidos da visão e da audição foram os eleitos para dar conta da experiência estética no sentido mais nobre: aquele que eleva, que organiza, que dá sentido e forma ao mundo. Os outros sentidos — olfato, paladar, tato — ficaram mais ligados ao prazer imediato, à satisfação física, à sensualidade ou ao conforto. O belo, dizia-se, é para a alma, não para o corpo.

O olho julga o belo

A visão é o grande juiz estético do nosso tempo. Um quadro de Klimt, a arquitetura limpa de Niemeyer, um campo de lavanda no interior da França, a estética minimalista de um celular novo: tudo isso passa pela lente do olho que busca harmonia, proporção, equilíbrio, forma, aquilo que Platão chamava de “o esplendor da ordem”. A visão nos permite admirar o distante, o intocável — por isso ela serve ao julgamento desinteressado que Kant descreveu como próprio do belo.

É na visão que o “belo” se solta do útil. Um vaso pode ser belo mesmo vazio. Uma cadeira pode ser bonita mesmo se desconfortável. Isso não acontece com o gosto ou o cheiro — um bolo bonito que tem gosto de sabão é uma decepção total.

O ouvido ouve beleza

A audição vem logo atrás. Música, voz, som do vento nas árvores, o silêncio tenso antes de um trovão. O som é invisível, mas cheio de forma: ritmo, melodia, cadência. O belo sonoro também é julgado pela mente — especialmente quando foge do trivial. Um coral de Palestrina, um solo de guitarra inesperado, a voz rouca de quem sabe falar ao microfone.

Mas aqui já começamos a ver um detalhe curioso: para chamar de belo um som, é preciso um pouco de cultura, de memória, de repertório. O mesmo som pode ser ruído ou beleza, conforme o ouvido que escuta.

E o gosto? O cheiro? O toque?

O paladar e o olfato são maravilhosos — mas na maioria das vezes nos limitamos a dizer que algo é “saboroso”, “cheiroso”, “apetitoso”. Por quê? Porque eles nos ligam diretamente ao desejo, à necessidade do corpo: comer, beber, sentir prazer. São sentidos que nos aproximam do objeto de forma íntima, pessoal — não desinteressada. Kant diria que eles não servem ao julgamento puro do belo porque nos lembram do nosso corpo, da nossa fome, da nossa carne.

Mas a modernidade (e os chefs de cozinha) tentam resgatar esses sentidos para a estética pura: um prato de alta gastronomia é montado como uma obra visual, perfumada como um jardim, texturizada como uma escultura — e só depois provada. Mesmo assim, no fim das contas, dizemos que ele é “incrível”, “delicioso”, “inesquecível” — mas quase nunca apenas “belo”.

O tato também não escapa dessa regra: podemos achar um tecido agradável, uma escultura suave, mas é raro alguém chamar de “belo” o toque em si. O tato serve de complemento ao olhar — nunca é o protagonista.

O movimento e o equilíbrio: beleza em ação

Curiosamente, o movimento do corpo, a dança, o gesto também podem ser julgados belos — mas aqui novamente entra a visão: o que é belo é o que vemos no movimento do outro. Uma bailarina é bela na leveza que o olho percebe, não no toque de sua pele.

Até o equilíbrio do corpo, aquela vertigem controlada numa pirueta ou num salto, torna-se estético porque é espetáculo para o olhar.

Por que "belo" é palavra de poucos sentidos?

No fundo, chamamos de belo aquilo que pode ser apreciado de longe, sem desejo imediato, sem posse, sem uso — aquilo que deixa espaço para o pensamento refletir, comparar, lembrar, julgar. Por isso, na história da cultura, o olho e o ouvido foram eleitos como os sentidos maiores da estética.

Os outros sentidos nos puxam para dentro do corpo — e o belo, diziam os antigos, quer nos puxar para fora, para o universal, para o desinteressado. Mesmo na modernidade, quando tentamos elevar o cheiro, o gosto e o toque à categoria de arte, ainda usamos outras palavras: gostoso, perfumado, delicioso, aconchegante.

Talvez porque beleza — essa palavra estranha, teimosa, filosófica — seja, acima de tudo, uma coisa da mente. E ela adora o que os olhos e os ouvidos lhe trazem para pensar.


quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sinônimos de Amor

Por que não um ensaio Filosófico-Poético sobre um Verbo Irremediável: “Amor é Amar”

Para ler ouvindo a música Sinônimos de Zé Ramalho:

https://www.youtube.com/watch?v=FUz0a2cl_RM

Dizem que amar é verbo nobre, mas nunca disseram que é um verbo sem defesa. Amar é, no fundo, consentir com o próprio desamparo. É sofrer de forma escolhida — e eis a novidade: um sofrimento querido, quase desejado, aceito como quem aceita uma ferida que não quer ver curada. Não há amor sem alguma fissura, como não há casa antiga sem rachadura nas paredes. O amor, como as velhas moradias, guarda o cheiro de seus próprios desabamentos.

Amar não é paz. É um incêndio discreto que arde sem consumir — uma febre sem remédio, uma fome que não passa porque o alimento é o próprio desejo. O amante sofre porque quer — sofre porque ama; e não há jeito de separar um do outro sem que ambos morram. O amor sem sofrimento é jardim de plástico: bonito de longe, mas sem vida, sem cheiro, sem risco.

Quem ama teme. Teme perder, teme não ser amado, teme ser demais, teme ser de menos. Teme que o outro mude, que o tempo mude, que a própria alma mude. O amor é um campo minado de suposições, esperanças, incertezas. Nenhum amor verdadeiro anda de mãos dadas com a segurança — quem se sente seguro demais no amor já não ama, apenas administra um contrato civil de convivência.

Amar é sofrer porque o outro escapa. O outro nunca cabe inteiro no nosso abraço, nunca é exatamente o que imaginamos. O amor real é sempre um pouco menor (ou maior) que o amor sonhado. E é nessa fresta que mora o sofrimento: o amor é o que falta, mesmo quando está presente. Como dizia Fernando Pessoa:

"Tudo quanto o amor me dá

É o que me faz falta nele..."

Sim, o amor é falta. O outro é sempre inacessível em alguma parte — e é isso que nos mantém vivos, desejantes, queimando de curiosidade pela alma alheia.

Mas — e eis o que a filosofia nos sussurra — o sofrimento do amor não é fracasso, é potência. Porque só quem ama de verdade se permite não controlar. Só quem ama aceita a aventura de ser ferido e mesmo assim permanece. Amar é dizer ao mundo: "estou disposto a perder". E nisso reside uma força mais rara que a razão: a força de quem suporta o incerto.

Schopenhauer via nisso uma armadilha da vida: amar seria cair no truque da natureza, que nos obriga a sofrer para perpetuar a espécie. Um ciclo de desejo e dor do qual não podemos escapar, meros joguetes da Vontade cega da vida. Mas talvez ele estivesse cego para o outro lado do espelho: que sofrer por amor é a única dor que nos torna mais vivos, não menos.

Nietzsche, ao contrário, via no amor (especialmente no amor que sofre) uma promessa de superação. Não um castigo, mas uma prova: quem ama intensamente é empurrado para fora de si mesmo, para o perigo, para a vertigem — e só quem suporta isso pode tornar-se criador de si. Para ele, o amor que dói é o mesmo que fortalece; é um campo de batalha onde morre o velho eu e nasce o novo. Ele escreveu:

"Há sempre um pouco de loucura no amor. Mas também há sempre um pouco de razão na loucura."

Amar, para Nietzsche, é desordem criativa — não morte, mas transformação.

No fim, amar é sofrer, sim — mas é um sofrer que acorda, não que adormece. Um sofrer que afia a alma, como quem passa a faca na pedra até que brilhe. Sofrer de amor é a única dor que vale o preço, porque ao final dela descobrimos o mais estranho dos milagres: que doendo, crescemos.

Fernando Pessoa, com sua lucidez trágica, sabia disso. Em seus versos dispersos, confessou:

"Amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errônea fé..."

Até mesmo o amor sofrido vira saudade bela. Até a dor se recicla em ouro da memória.

Por isso, quem ama sofre. E quem foge do amor, sofre também — mas de um sofrimento mais frio, mais inútil, mais seco. O sofrimento de quem não ousou. O sofrimento de quem escolheu a paz dos que não viveram.

Talvez o amor seja, afinal, a arte de escolher o sofrimento certo.

A dor certa.

A ferida nobre.

A falta que nos salva.


O Banquete

O amor não pede licença!

Este ensaio tem como base a obra O Banquete de Platão, escrita no século IV a.C., na qual diversos personagens — entre eles Sócrates, Aristófanes e Agatão — se reúnem para discursar sobre a natureza do amor (Eros). O texto, estruturado como um diálogo filosófico e literário, explora diferentes concepções de amor, desde o desejo físico até a contemplação do Belo absoluto, sendo uma das mais influentes reflexões da tradição ocidental sobre o tema.

Tem gente que acha que falar de amor é coisa de poeta meloso ou de livro de autoajuda de aeroporto. Mas basta um encontro casual no metrô, uma mensagem não respondida, ou aquele silêncio constrangedor no jantar para percebermos: o amor é uma força estranha que atravessa tudo — inclusive quem não quer papo com ele. E é justamente por essa força indomável que O Banquete, de Platão, continua a ser um texto desconcertante. Lá estão Sócrates, Aristófanes, Fedro, Agatão e companhia, cada um tentando definir o tal Eros como quem tenta agarrar vento com as mãos.

Mas talvez o maior erro de leitura seja encarar O Banquete como um tratado sobre o amor apenas entre corpos ou entre almas. O texto é também sobre outra coisa: o impulso que nos arranca do lugar em que estamos e nos faz querer o que não temos. Não importa o objeto — beleza, sabedoria, eternidade ou poder —, amar é sempre uma falta. Um furo no tecido do real. Um buraco que nem mesmo os deuses escapam de sentir.

Aristófanes, com seu mito dos andróginos partidos, aposta numa visão engraçada e melancólica: éramos inteiros, fomos divididos, e agora vagamos incompletos atrás de nossa outra metade. Uma visão romântica que ainda alimenta aplicativos de namoro, filmes da Sessão da Tarde e promessas de “alma gêmea”. Mas há algo de trágico nisso: quem garante que vamos mesmo encontrar esse pedaço perdido? E se formos condenados a desejar para sempre?

Aí entra Sócrates, com sua cara de quem sabe algo que não diz. Ele fala de uma outra forma de amor, passada para ele por Diotima: o Eros que começa no corpo, mas não para nele; que escala degrau por degrau até o amor das ideias puras, da Beleza em si. Uma pirâmide de desejo que, no topo, esquece o cheiro da pele, o calor do toque, o suor do abraço. Um amor que deixa o humano para se dissolver no divino. Bonito? Sim. Satisfatório? Nem tanto.

Aqui um em tempo para falar de Diotima: Diotima de Mantineia foi uma sacerdotisa e filósofa grega antiga, conhecida por sua influência no pensamento de Sócrates, especialmente em relação ao amor. Ela é apresentada no diálogo "Banquete" de Platão, onde Sócrates a descreve como sua mentora e ensinadora sobre o amor (Eros). 

Prosseguindo. E se O Banquete for, no fundo, uma confissão de que amar é impossível de resolver? De que não há saída justa entre o corpo e o espírito, entre o desejo que quer possuir e o ideal que quer contemplar? Talvez por isso o texto termine como termina: com Alcibíades bêbado invadindo a festa e bagunçando o jogo filosófico com sua paixão descontrolada por Sócrates. Um lembrete incômodo: a carne não deixa ninguém subir a escada de Diotima sem antes puxar pelos calcanhares.

O amor, no fundo, é uma contradição ambulante. É impulso vital e desordem. É aspiração à imortalidade e consciência dolorida da nossa finitude. Quer eternizar, mas não dura. Quer possuir, mas foge. É por isso que O Banquete segue vivo: porque não entrega uma resposta, e sim um campo de tensão onde cada leitor — como cada amante — precisa se virar.

Talvez o verdadeiro banquete do amor seja isso: um prato que nunca se esvazia, mas também nunca se saboreia por inteiro. E quem tenta dar conta dele, como Platão, Sócrates ou a gente aqui, acaba sempre saindo da mesa com fome.

O amor em tempos de scroll: Platão no século XXI

Se Platão ressuscitasse hoje e pegasse um celular na mão, talvez levasse um susto. Nunca houve tanta gente tentando amar ao mesmo tempo: Tinder, Hinge, Bumble, Instagram. E mesmo assim, nunca se falou tanto de solidão. O paradoxo platônico continua: o desejo aproxima, mas nunca sacia. Seguimos os mesmos andróginos partidos de Aristófanes, só que agora deslizando perfis com o polegar em vez de vagar pelas praças de Atenas.

O amor no trabalho? Também ali mora um Eros disfarçado. O desejo por reconhecimento, promoção, sentido. Não é à toa que tanta gente se diz "apaixonada pelo que faz" ou "casada com a carreira". Mas essa paixão também carrega o risco platônico: quanto mais desejamos esse ideal — sucesso, realização —, mais percebemos o abismo entre o real e o imaginado. A escada de Diotima existe aqui também: começamos com o salário, depois o cargo, depois o status... até que vem a dúvida: para onde tudo isso leva? Qual o Belo por trás dessa luta diária?

E a amizade? No Banquete, Fedro sugere que o amor inspira coragem nos guerreiros — talvez hoje ele diria: nas amizades reais, longe do like fácil. Porque amigo de verdade não é quem só confirma o que você posta; é quem te lembra de quem você é quando você mesmo esquece. Amar um amigo é um Eros lateral, discreto, mas essencial. Como um fio que segura a alma em dias de tempestade.

Mas o ponto mais inquietante é este: Platão talvez suspeitasse que, no fundo, o amor é um jogo que nos engana para nos manter vivos. Diotima diz: Eros não é deus, é demônio — intermediário entre o mortal e o imortal. Ou seja: o amor é ponte, não destino. Nunca paramos nele, sempre passamos por ele querendo outra coisa. Isso serve para o romance, para a arte, para o trabalho, para a política. Tudo é desejo de algo que nunca se alcança por completo.

Talvez seja essa a lição escondida no Banquete: aceitar o amor como falta, como impulso criativo que nos obriga a inventar sentido onde ele não existe pronto. Um convite à imaginação, não à satisfação.

Por isso, quem ama demais uma resposta (seja um par perfeito, um cargo ideal ou uma amizade sem falhas) corre o risco de perder o melhor da festa: o próprio banquete da procura.

E assim Platão — sem saber — já falava de nós: esses seres inquietos de 2025, com o coração cheio de abas abertas, sonhando com completude entre uma notificação e outra.

Último gole: Platão encontra Byung-Chul Han

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han diria que vivemos hoje não a era do amor platônico, mas a do desempenho: um tempo em que até amar virou tarefa de alta performance. Vender-se bem nos aplicativos, performar felicidade no Instagram, ser desejável, interessante, produtivo — até no campo afetivo. Eros virou um coach cansativo.

Mas o amor verdadeiro, lembra Han em A Agonia do Eros, é encontro com o Outro real, não com o espelho do mesmo. Algo que rasga a bolha da autoimagem e nos põe em risco. Como Alcibíades invadindo a festa de Sócrates: bagunçando o roteiro perfeito, derrubando a taça, fazendo a filosofia tropeçar.

Talvez seja este o aviso escondido em O Banquete, atravessando os séculos: amar é perder o controle. E, quem sabe, é aí — nesse tropeço, nessa falta, nesse inacabamento — que a vida se faz de verdade.


quarta-feira, 11 de junho de 2025

Apego e Aversão

 

Os fios que nos puxam...

Há dias em que tudo parece querer nos segurar. A velha caneca de café, o casaco preferido gasto nos cotovelos, o lugar certo à mesa do almoço. E há dias em que tudo irrita: o barulho da rua, o aviso do celular, a mesma pergunta repetida no trabalho. Apego e aversão são como dois fios invisíveis que nos puxam, sem que percebamos, para cá e para lá — como marionetes gentis da nossa própria mente.

No mercado, a senhora que resmunga porque mudaram de lugar o pacote de arroz talvez nem saiba, mas ali está o apego disfarçado de costume. No ônibus, o rapaz que enfia fones de ouvido para fugir da conversa do lado pratica uma pequena aversão, querendo sumir do mundo em miniatura. Apego e aversão são esses gestos miúdos, diários, quase sem peso — e que, somados, fazem a alma perder leveza.

No amor, por exemplo, o apego se disfarça de zelo. É o ciúme que não deixa o outro respirar, a expectativa de que o parceiro complete nossos vazios. Queremos segurar o amor, garantir que não acabe, como quem segura água nas mãos. E quando o outro se afasta um pouco — um olhar distraído, uma resposta seca — surge a aversão: raiva disfarçada de mágoa, desejo de punição. Para Simone Weil, esse é o momento em que deveríamos aceitar o vazio — não exigir do outro a felicidade que só a graça pode dar.

Na amizade, o apego é querer que o amigo continue sempre o mesmo, preserve as mesmas opiniões, os mesmos gostos. E a aversão surge quando ele muda: novas ideias, novos interesses — como se fosse uma traição. Mas a verdadeira amizade, como lembrava N. Sri Ram, reconhece o movimento da vida e permite que o outro cresça, mesmo que vá para longe de nós.

No trabalho, o apego aparece como medo de perder o cargo, a rotina, o status. Tornamo-nos escravos do desempenho — cada e-mail respondido, cada tarefa cumprida para manter o lugar conquistado. E nasce a aversão a tudo que ameaça esse equilíbrio: mudanças, novos chefes, jovens colegas criativos. Para Byung-Chul Han, essa lógica de produtividade incessante nos esgota porque não há espaço para a pausa, para o não-fazer — nos tornamos máquinas de nós mesmos, com aversão ao simples descanso.

N. Sri Ram, no livro O Interesse Humano e outros discursos e ensaios curtos, me lembra que esse apego à forma — seja do amor, da amizade ou do trabalho — impede a verdadeira abertura ao real. Queremos que as coisas fiquem como estão porque tememos o desconhecido. Mas a vida não para: nem o parceiro amoroso, nem o amigo de infância, nem o emprego perfeito. Tudo flui. E a alma livre é a que aprende a acompanhar esse movimento sem agarrar nem repelir.

No fundo, como diz a sabedoria zen, apego e aversão são dois nomes para o mesmo medo: o de perder o controle. E o controle é sempre uma ilusão.

Talvez o segredo esteja mesmo em tocar o mundo com mãos abertas — sem fechar o punho sobre o que se ama, sem empurrar com raiva o que desagrada. Ver, sentir, deixar passar. Como quem atravessa um campo e deixa a relva voltar ao lugar.