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quarta-feira, 11 de junho de 2025

Poder no Cotidiano

O Ar-Condicionado, o Professor e Montesquieu falam sobre o Poder no Cotidiano

No verão, no Brasil, há um dilema silencioso que se repete em escritórios, escolas e repartições públicas: quem decide a temperatura do ar-condicionado? Parece banal, mas esse pequeno conflito revela um problema milenar: como dividir o poder para que ninguém sofra demais? Uns querem 18 graus para congelar o stress; outros sonham com 25, para não virar pinguim no trabalho. E o que isso tem a ver com Montesquieu? Tudo.

Montesquieu acreditava que o segredo de uma sociedade justa não está em grandes revoluções ou utopias distantes, mas em algo muito simples: separar o poder, impedir que ele se concentre numa só mão, porque quem tem todo o poder tende a usá-lo contra os outros — mesmo sem querer. No caso do ar-condicionado, é o chefe que decide sozinho? O professor na sala de aula? O motorista do ônibus? A maioria dos passageiros? Se não houver divisão de decisão (ou regras combinadas), alguém vai sofrer em silêncio — de frio ou calor — e o "despotismo" do ar gelado se instala.

Montesquieu, um grande pensador do iluminismo viveu entre 1689 e 1755, numa França marcada pelo brilho e pelo peso do absolutismo monárquico de Luís XIV, o chamado Rei Sol, e depois sob o governo menos imponente, mas ainda centralizador, de Luís XV. Era uma época em que o poder do rei parecia sem limites — ele decidia sobre as leis, as guerras, a religião e até a vida privada dos súditos. A Igreja Católica ainda dominava o pensamento oficial, e as ideias de liberdade circulavam em voz baixa, nos salões e nos livros discretamente publicados. Montesquieu, jurista e pensador atento, percebeu que o problema central de seu tempo era a concentração de poder, e sua resposta genial foi defender a separação dos poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), a liberdade garantida por leis moderadas e adaptadas aos costumes de cada povo, e o cuidado com o despotismo, regime em que o medo governa e paralisa a sociedade. Sua grande obra, O Espírito das Leis, refletiu essa preocupação: para ele, não existe uma lei universal válida para todos os tempos e lugares, pois as regras de um país precisam brotar de sua cultura, geografia, economia e tradições. A liberdade só nasce onde o poder se freia a si mesmo — um princípio que mudaria o futuro das democracias modernas, mesmo que seu autor não as tenha visto florescer em vida.

O exemplo acima serve para muita coisa da vida. Em casa, quem decide a comida do domingo: a mãe? O pai? A avó? Se ninguém for ouvido, vem a insatisfação. No trabalho, quem determina as tarefas? O líder sozinho ou uma equipe que debate? A lição de Montesquieu ecoa sem parar: o poder precisa ser dividido, vigiado e equilibrado — até nas pequenas coisas.

Mas ele foi além: percebeu que as leis de uma sociedade não podem ser cópias de modelos estrangeiros ou ideias abstratas. Elas têm que ter o "espírito" do povo, do lugar, do clima, da tradição. Ou seja: numa cidade quente do Nordeste, o conflito do ar-condicionado é diferente do de uma escola na serra gaúcha. A lei, a decisão, a regra — precisam fazer sentido para aquele espaço e para aquela gente. Um modelo europeu pode falhar no Brasil; uma regra paulista pode não servir para o interior do Piauí. Montesquieu avisou: as leis nascem do solo onde pisamos, não de teorias importadas.

Ele também falou sobre os tipos de governo — e esses também vemos na vida comum. Há casas que funcionam como repúblicas (todo mundo opina), outras como monarquias (o pai ou a mãe decidem com honra) e outras ainda como pequenos despotismos (o avô manda e ninguém contesta). No trabalho, há líderes democráticos, outros "reis" benevolentes, e outros temidos chefes absolutistas. Tudo isso espelha o que Montesquieu desenhou no século XVIII.

Por fim, o grande medo do pensador francês era o despotismo — um regime onde o medo reina e ninguém ousa falar. Isso também aparece no cotidiano: em famílias onde ninguém ousa questionar; em empresas onde se teme o chefe; em escolas onde o aluno jamais pergunta. Quando o medo entra, o pensamento some — e a liberdade evapora.

Montesquieu continua atual porque nos lembra que liberdade não é fazer o que se quer — mas ter regras justas que nos protegem de quem manda demais, até no controle do ar-condicionado. Liberdade é quando ninguém congela no escritório, ninguém passa calor no ônibus, ninguém engole o almoço errado sem ter voz no cardápio.

Esse é o segredo silencioso de uma vida bem vivida: poder compartilhado, voz ouvida, lei ajustada ao lugar — e a tirania banida até dos detalhes do dia-a-dia.

Por isso Montesquieu permanece um pensador necessário — porque entendeu o que muitos ainda esquecem: o poder sem limite se torna perigoso, mesmo quando nasce de boas intenções. Não é à toa que ele escreveu em O Espírito das Leis:
“Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas dos particulares”.

Esse alerta simples mudou a política moderna — e, discretamente, também nos alerta para os pequenos despotismos da vida cotidiana. Na casa, na escola, no trabalho, no ônibus ou no ar-condicionado do escritório, há sempre o risco de alguém decidir tudo sozinho, sufocando o resto.

Montesquieu nos lembra, com a paciência dos grandes mestres, que a liberdade não é grito, nem desordem, nem ausência de regra — mas sim o equilíbrio silencioso entre forças que se limitam e se respeitam. Quando o poder se reparte, até o verão na repartição pública fica menos cruel. E assim, no detalhe banal da temperatura ambiente, brilha a lição discreta do filósofo francês.

terça-feira, 10 de junho de 2025

Os Eleitos

Quando o Sagrado ri de si mesmo: um olhar filosófico sobre Os Eleitos de Thomas Mann

Quem nunca foi atraído por uma história que parece brincar com o próprio peso da vida? Aquele tipo de narrativa que fala de culpa, pureza, vocação — mas que faz isso sem carregar um semblante sisudo, sem fingir que o destino é um fardo absoluto? Thomas Mann fez essa mágica em Os Eleitos (1951), um pequeno e ousado romance que atravessa as fronteiras do sagrado e do grotesco, sem nunca perder o humor sutil, quase cúmplice, que só os grandes ironistas dominam.

O romance é uma releitura de uma velha lenda medieval, a história de Gregorius — uma espécie de Édipo cristão que comete incesto com a própria mãe sem saber, abandona o mundo em penitência por longos anos e retorna para ser aclamado papa. Eis o paradoxo inicial: o homem mais pecador é também o mais santo. O pecado torna-se condição da graça.

Mas Thomas Mann não conta essa história para nos pregar uma lição moral qualquer. O que interessa ao escritor — e o que nos permite fazer aqui um ensaio filosófico inovador — é a própria arquitetura da escolha. Quem são, afinal, “os eleitos”? Por que certos homens parecem destinados a atravessar o abismo da queda e da vergonha só para, depois, serem erguidos a uma altura impossível? E se o destino, o Fado (ou Deus, para os crentes), fosse um dramaturgo brincalhão, que constrói heróis a partir de ruínas?

O acaso como instrumento do divino

Em Os Eleitos, nada é limpo ou direto. O sagrado se mistura ao obsceno, o puro ao impuro. O leitor percebe que a própria Providência parece usar o erro como ferramenta. Deus, segundo o narrador da história, escreve certo por linhas tortíssimas — e o faz de propósito. Como diz o monge que recolhe o pequeno Gregorius nas margens do rio: "O homem é instrumento do desígnio celeste, ainda quando não o sabe; e quanto menos o sabe, mais fiel é à sua função."

Aqui nasce um pensamento desconcertante: e se a nossa ignorância, os nossos erros, os nossos deslizes — aquilo que supomos ser desvio — fossem precisamente o caminho necessário da vida? Seria a culpa apenas um disfarce para a preparação do destino?

Essa ideia ecoa o conceito de felix culpa, a "culpa feliz" medieval: o pecado de Adão não foi um acidente infeliz, mas uma condição necessária para que a Redenção viesse ao mundo. Sem queda, sem salvação. Sem erro, sem transformação.

A construção do herói a partir da vergonha

Em Gregorius, Thomas Mann vê um modelo de homem moderno: alguém que, para encontrar sentido, precisa atravessar a experiência do absurdo. O protagonista abandona o mundo por 17 anos, preso a uma rocha — não porque deseja glória, mas porque se vê esmagado pela vergonha. E é justamente por essa “inutilidade” radical, por esse tempo desperdiçado e estéril, que ele se torna grande.

O filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard escreveu que o desespero é o caminho da verdadeira fé: quem não experimenta o vazio não pode alcançar o salto para o divino. Gregorius, o "papa incestuoso", realiza exatamente esse itinerário: o pecado o lança no fundo do nada — e é dali que ele emerge purificado.

A ironia suprema de Mann é que o destino escolhe o mais culpado para ser o mais puro. O mal absoluto é matéria-prima do bem supremo. O leitor moderno, inquieto, não sabe se ri ou se chora. E talvez essa seja a intenção do autor: mostrar que a vida é, no fundo, uma farsa sagrada — ou uma liturgia farsesca.

O divino rindo de si mesmo

Talvez a maior inovação de Thomas Mann em Os Eleitos seja justamente essa: fazer do divino um personagem ambíguo, quase risível. O Deus de Mann não é o juiz terrível do Velho Testamento; é um demiurgo que joga com peças tortas, um artista que sabe extrair beleza de fragmentos partidos.

O homem eleito é, antes de tudo, um equívoco divino — mas um equívoco necessário. Ele é grande porque falhou; é santo porque caiu. Como escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin, "não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie". O mesmo vale para a alma humana: não há virtude sem sombra; não há eleição sem ruína.

O absurdo como via para o sentido

Os Eleitos é uma obra estranha porque nos força a aceitar o absurdo não como inimigo da razão, mas como sua consumação. Gregorius se torna papa justamente porque pecou — e não apesar disso. Ele é escolhido não por sua força, mas pela fragilidade.

A lição é amarga e luminosa ao mesmo tempo: ninguém escapa do erro; mas o erro pode ser o fio da trama que nos conduz à graça. O universo, sugere Thomas Mann, é governado por um princípio irônico, que se diverte em esconder o ouro na lama, a virtude na vergonha, o sagrado no grotesco.

E talvez nós também sejamos eleitos, sem saber. Não por nossas virtudes — mas por nossos tropeços.

Tirania da Exposição

Quando ser visto se torna uma prisão

Há quem diga que a maior liberdade do nosso tempo é poder ser quem somos, do jeito que quisermos, para quem quiser ver. Mas por trás desse ideal de autenticidade, há um cansaço crescente. A socióloga Eva Illouz nos ajuda a entender por quê: vivemos uma era em que mostrar-se não é mais opção, é exigência. A exposição virou regra. E isso, longe de libertar, aprisiona.

Pense em situações banais do dia a dia. Você sai com os amigos, tira uma foto e hesita: posta ou não posta? Se posta, precisa parecer feliz, espontâneo, bonito. Se não posta, parece que não viveu. O momento só vale se for mostrado. Já não se trata de guardar lembranças, mas de fabricar provas públicas de existência.

Illouz, socióloga que se dedica a estudar as emoções no mundo contemporâneo, chama atenção para esse paradoxo. Em O Amor nos Tempos do Capitalismo, ela mostra como a intimidade deixou de ser sagrada e virou mercadoria emocional. Falamos de sentimentos em público, nos expomos em redes, e aprendemos que isso é sinal de maturidade emocional. Mas, como ela mesma diz, “essa fala virou norma, e não mais escolha”. Não expor-se hoje parece um ato de resistência – ou de estranhamento social.

Isso se reflete também nas dores do amor. Em Por que o amor dói, Illouz afirma que a dor afetiva contemporânea é agravada por um mercado de relações onde tudo é substituível e comparável. As redes sociais funcionam como vitrines de vidas emocionais idealizadas. A exposição do outro – o ex, a ex – nos obriga a confrontar nossa insuficiência. Não se trata apenas de perder alguém, mas de ver esse alguém seguir com outro – e sorrindo em fotos com filtro.

Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, chama isso de “sociedade da transparência”. Tudo precisa ser mostrado, compartilhado, comentado. A privacidade passou a ser quase uma suspeita: quem não se mostra está escondendo algo. Mas essa lógica elimina o mistério, o silêncio, o tempo de elaboração interior. Para Han, a transparência, que parecia ética, virou forma de controle.

A psicóloga americana Sherry Turkle acrescenta mais um ponto: estamos “sozinhos, juntos”. Ou seja, cercados de contatos, mas desconectados da profundidade. A exposição digital simula intimidade, mas nos rouba a presença real. A todo instante, projetamos uma imagem, uma versão de nós mesmos. Sentimos, como diz Eva Illouz, para os outros. A dor, o amor, a alegria, tudo precisa passar por um enquadramento visual, uma legenda que diga: “olha quem eu sou”.

E se não quisermos ser vistos? E se o momento pede recolhimento, silêncio, desordem? Aí mora a tirania: não se trata de sermos impedidos de falar, mas de sermos obrigados a mostrar. O direito ao anonimato emocional, à privacidade afetiva, ao sofrimento mudo – esse direito está em extinção.

Nas filas de espera, nos velórios, nos primeiros encontros, tudo parece pedir um registro. Já não se vive apenas com os outros, mas para os outros. E quando se vive assim, resta pouco espaço para a verdade íntima, aquela que não cabe em legenda, nem em filtro.

Talvez o desafio do nosso tempo seja reaprender a desaparecer. A permitir-se viver algo sem publicar. A sentir sem moldar o sentimento para o olhar externo. A recuperar o silêncio como uma forma de linguagem.

Eva Illouz não diz que devemos abandonar as redes, mas nos convida a pensar: o que ainda resta de nós quando ninguém está olhando?

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Manejo da Impressão

“Quem é você quando ninguém está olhando?”

Aqui vamos trabalhar num ensaio sobre o manejo da impressão e os palcos da vida cotidiana

Você já parou para pensar que, na vida, somos todos atores? Não do tipo que sobe ao palco com aplausos — mas daqueles que atuam em reuniões, em jantares de família, no elevador com o vizinho, até mesmo no grupo do WhatsApp. Às vezes o papel exige bom humor, outras vezes impaciência contida, e, com frequência, um certo esforço para parecer que estamos bem, mesmo quando não estamos. Nesse grande teatro da vida, o sociólogo Erving Goffman (1922-1982) acende as luzes do palco e revela uma verdade incômoda: não somos um “eu”, somos muitos.

No livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Goffman apresenta a ideia de que o “eu” que mostramos é fruto de uma performance cuidadosamente gerida — o que ele chama de manejo da impressão. Mas e se formos além? E se esse manejo não for apenas uma adaptação ao social, mas também um modo de sobrevivência filosófica em um mundo que exige máscaras como forma de reconhecimento?

A sociedade como plateia ansiosa

Cada encontro social nos pede um papel. Não um papel escrito por nós, mas roteirizado pelas expectativas alheias. O funcionário precisa parecer produtivo mesmo nos dias de cansaço; o estudante simula interesse diante de um conteúdo que não compreende; a mãe que esconde o choro para sorrir ao filho. Não é mentira. É um acordo tácito: se você performar o suficiente, será aceito.

O manejo da impressão, nesse sentido, não é apenas controle de imagem — é negociação simbólica de pertencimento. A sociedade não quer apenas ver o “eu verdadeiro”; ela deseja ver o que reconhece como normal, funcional e confortável. Assim, ajustamos os gestos, os silêncios, os emojis.

O eu como ficção em construção

Se o mundo é um palco, o “eu” que mostramos é um personagem. Mas seria esse personagem uma farsa? Talvez não. A filosofia contemporânea já não acredita tanto em essências fixas. Para pensadores como Judith Butler, o sujeito se constrói performativamente — ou seja, ele é o que faz repetidamente. E se Goffman nos mostrou o teatro social, Butler revela que essa atuação não é uma máscara sobre um rosto verdadeiro, mas o próprio rosto se formando com cada papel que representamos.

O eu, então, seria uma espécie de remix constante entre o que sentimos e o que o outro exige que mostremos. Um mosaico de pequenos “eus” que se ajustam conforme o palco muda — do metrô à sala de jantar, do encontro romântico ao boletim médico.

O bastidor como espaço de reconciliação

Nos bastidores, longe do público, caem as máscaras — ou pelo menos, trocam-se por outras. Mas será que ainda existe um “eu autêntico” nesse lugar escondido? Goffman não responde com clareza, mas nos convida a pensar que mesmo nos bastidores há performance, ainda que mais relaxada. A solidão, o espelho, o travesseiro à noite — são também palcos, embora com luzes mais suaves.

Contudo, é nesse momento íntimo que talvez surja a chance de uma autoescuta. De pensar: “será que me tornei aquilo que performei por tanto tempo?” A pergunta não é retórica. A vida tem o poder de nos transformar pelas repetições que aceitamos. É o risco da performance: virar o papel que foi criado para agradar o outro.

Viver é atuar — mas com consciência

Não há como viver fora do teatro social. Somos seres em relação, e isso exige ajustes, cortes, improvisos. Mas o perigo não está em representar. O risco mora na inconsciência do papel. Quando esquecemos que estamos atuando, entregamos o volante da nossa identidade a uma plateia que nem sempre aplaude com justiça.

Por isso, o manejo da impressão, mais do que uma técnica social, deve ser também uma ferramenta filosófica de autoconhecimento. Reconhecer o personagem que estamos sendo, entender por que o escolhemos, e nos perguntar, vez ou outra: quem seríamos se o palco estivesse vazio?

Fala porque pensa

Vamos falar sobre a origem do dizer e o silêncio que pensa

Já reparou que, às vezes, ficamos em silêncio, mas estamos cheios de ideias? Uma conversa pode estar parada por fora, mas por dentro mil pensamentos correm. Não estamos sempre dizendo tudo o que passa. Na verdade, quase nunca dizemos. O que chamamos de fala é só a ponta do iceberg do que se passa na mente.

E se for isso mesmo? Se a fala vier depois do pensamento — como uma tentativa de tradução imperfeita do que já se formou antes? Nesse ensaio, a proposta é considerar o contrário do que se costuma afirmar em certos círculos neurolinguísticos contemporâneos: não pensamos porque falamos, mas falamos porque pensamos.

O pensamento silencioso

Muitas de nossas decisões mais profundas são tomadas sem palavras. Você acorda e sabe que está triste — antes mesmo de conseguir explicar por quê. Há uma camada pré-verbal da consciência, cheia de imagens, sensações, intuições. A linguagem, nesse cenário, não é a origem do pensamento, mas um instrumento para compartilhá-lo com o outro (e, às vezes, consigo mesmo).

Descartes, no famoso penso, logo existo, não disse falo, logo penso. O pensamento é a base da subjetividade. É anterior à fala, mais amplo e mais sutil. O filósofo Henri Bergson defendia que a consciência excede a linguagem — que pensar é como nadar em um mar interno, enquanto falar é escolher uma garrafinha para conter o oceano.

Linguagem como casca do pensamento

Quantas vezes já sentimos algo que não conseguimos dizer? Ou percebemos que, ao tentar explicar uma ideia, ela se esvazia? Isso revela que a linguagem é um instrumento limitado frente à riqueza do pensamento. Falamos, sim, mas porque algo já foi fermentado antes. O pensamento é o forno; a fala, o pão assado.

O psicólogo suíço Jean Piaget argumentava que a linguagem é uma consequência do desenvolvimento cognitivo, e não sua causa. Para ele, a criança pensa antes de falar — e vai aprendendo a colocar em palavras o que já está se formando como raciocínio interno.

Quando a fala atrapalha

Num mundo ruidoso, talvez falar demais atrapalhe o pensamento. Distrações verbais, conversas vazias, impulsos de dizer antes de refletir — tudo isso pode desfigurar a verdadeira linha do pensamento. Um tuíte mal pensado, uma resposta impensada: palavras saem, mas não vieram do pensar, vieram da pressa.

Se fosse verdade que a fala cria o pensamento, todo mundo que fala muito pensaria melhor. Mas não é o que se vê. Pensar exige silêncio. A fala boa vem depois. Como o escritor que reescreve mil vezes antes de publicar. Como o sábio que ouve mais do que fala.

Pensar é mais que dizer

A mente humana é capaz de pensar com imagens, sons, metáforas internas, simulações motoras. Quando antecipamos um futuro possível, quando lembramos de um cheiro da infância, ou quando visualizamos um projeto de vida — nada disso precisa, necessariamente, da linguagem articulada.

A neurociência apoia essa pluralidade de formas de pensar. Antes da ativação das áreas verbais, há estímulos em regiões ligadas à emoção (amígdala), ao planejamento (córtex pré-frontal), à imaginação (hipocampo). Ou seja, o pensamento vem primeiro. A linguagem é um filtro — útil, poderoso, mas um filtro.

Fala é ponte, não semente

No fim das contas, falar porque se pensa é reconhecer que a fala não é a fonte da consciência, mas seu veículo. Pensar é existir num espaço íntimo, onde a palavra é convidada, não dona da casa. Só falamos porque temos algo a dizer. E esse algo nasce antes da fala.

Filosoficamente, talvez a fala seja apenas o momento em que o pensamento se arrisca no mundo. Nem todo pensamento vira palavra — e talvez ainda bem. Porque o silêncio também pensa. E, às vezes, é nele que se encontram as ideias mais verdadeiras.

domingo, 8 de junho de 2025

Pensa Porque Fala

Vamos refletir sobre consciência e invenção de si

A gente costuma pensar que primeiro se pensa, depois se fala. Como se as palavras fossem meros mensageiros de um conteúdo pronto, esperando pacientemente para ser dito. Mas, e se for o contrário? E se a fala for, ela mesma, o que nos permite pensar? Aquela conversa no banho, o desabafo com um amigo, até mesmo o murmúrio no trânsito – seriam momentos em que a linguagem constrói a consciência, e não o contrário?

Essa ideia, embora pareça surpreendente, já vinha sendo intuída por alguns pensadores e hoje é retomada por estudos contemporâneos de neurociência e linguística. Neste ensaio, vamos explorar essa inversão provocadora: o sujeito pensa porque fala. A fala não apenas expressa o pensamento – ela o inventa, o organiza, o edita. E mais: ao falar, criamos a nós mesmos.

O pensamento nu não existe

Imagine um bebê que ainda não fala. Seus gestos e emoções são vivos, intensos, mas sua capacidade de pensar sobre o que sente é limitada. É só quando ele começa a adquirir palavras que consegue distinguir o medo da fome, o desejo da dor. O filósofo Vygotsky já dizia que o pensamento e a linguagem se desenvolvem em um entrelaçamento mútuo. O pensamento é uma névoa até que a palavra o condense.

A neurociência contemporânea reforça essa visão: regiões do cérebro relacionadas à linguagem (como a área de Broca e de Wernicke) estão intimamente conectadas com redes de atenção, memória e planejamento. Falar é como esculpir o que estava apenas esboçado em sensação. Pensamos melhor quando escrevemos, quando conversamos, quando argumentamos. O silêncio pode ser fértil, mas é quase sempre a palavra que transforma intuição em ideia.

Falar como forma de se tornar

Cada vez que contamos algo de nós mesmos a alguém, organizamos a narrativa da nossa identidade. Não se trata apenas de informar. Estamos, ali, construindo sentido. “Naquela época eu era muito impulsivo” – ao dizer isso, estamos não só refletindo sobre o passado, mas nos diferenciando dele, assumindo um novo lugar no tempo. A linguagem verbaliza a mudança interior.

A filósofa Hannah Arendt dizia que a ação só se torna política quando é acompanhada da fala. O ser humano se revela ao mundo pelo que diz, mais do que pelo que pensa. Assim, o dizer é um ato de criação subjetiva. Falando, nos tornamos visíveis – e, ao nos ouvirmos falar, também nos vemos.

Linguagem como ferramenta inventiva

A estrutura da linguagem molda a estrutura do pensamento. Idiomas diferentes oferecem visões de mundo distintas. Para os esquimós, existem muitas palavras para “neve”. Para alguns povos indígenas da Amazônia, o tempo não é dividido em passado, presente e futuro. A forma como se fala determina o que se pode pensar.

No cotidiano, isso aparece quando buscamos uma palavra exata para nomear o que sentimos – e, só quando a encontramos, conseguimos agir. O mal-estar vira “ciúme”, ou “angústia”, ou “pressentimento”. Dar nome é mapear o território interno. Wittgenstein já dizia: “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.”

Pensar com a boca

Existe uma sabedoria na fala espontânea. Às vezes, a gente só entende o que pensa quando começa a explicar. Isso é comum em sessões de terapia, aulas, ou mesmo numa conversa de bar. O pensamento se desdobra conforme a fala se articula. Como se a mente esperasse a boca para ter coragem de se revelar.

Numa perspectiva neurolinguística, esse processo envolve uma retroalimentação entre as zonas cerebrais responsáveis pela formulação verbal e aquelas que coordenam emoções, memória e juízo. O que dizemos influencia o que sentimos, e o que sentimos influencia o que conseguimos dizer. Um circuito vivo.

A fala é o útero do pensamento

Ao contrário do que se pensa, a fala não é filha do pensamento – é sua mãe. Sem linguagem, o pensamento se esvai em intuições fugidias. Com a linguagem, ele ganha corpo, história, direção. Pensamos porque falamos, e falamos para nos tornar.

Talvez por isso conversar seja tão essencial à saúde mental. Ou por isso, quando estamos confusos, dizemos: “preciso botar pra fora.” Ao falar, damos forma ao informe. Ao ouvir a nós mesmos, nos compreendemos melhor. A linguagem é, no fundo, um espelho falante – e talvez seja nela que finalmente nos encontramos.


Aparentemente Insuportável

Vou falar sobre suportar o insuportável...então, vamos refletir...

Tem dias que a gente acorda e já sente um peso no peito, como se o ar fosse feito de chumbo. Tudo parece demais: a reunião no trabalho, a conta que venceu, o silêncio no quarto vazio. Às vezes nem é o que acontece fora, mas dentro. Uma tristeza sem nome. Uma ausência que não se preenche. Uma saudade que lateja. E a gente pensa: isso é insuportável. Mas é mesmo?

No cotidiano, chamamos de insuportável aquele chefe que não escuta, o trânsito que não anda, a fila que não anda, o filho que grita, a solidão que cala. O curioso é que a palavra carrega em si o veredito: “não se pode suportar”. E mesmo assim, seguimos. Chorando no banheiro, respirando fundo, contando até dez, às vezes só sobrevivendo.

Mas é no luto que o insuportável costuma se apresentar com toda a sua força. Quando alguém que amamos parte, não é só a presença física que vai embora. É a rotina que se quebra, o plano que não se cumpre, a palavra que não foi dita. Parece que uma parte da gente foi arrancada. Porém, se olharmos com calma, há algo que não se perde: a memória. E essa, ninguém tira de nós.

As lembranças ficam. Permanecem nos gestos que herdamos, nas histórias que contamos, no jeito de olhar que, de repente, lembramos que é igual ao dele ou dela. Há uma presença que resiste à ausência, e ela vive na memória — esse território inviolável do afeto. Como dizia a poetisa Adélia Prado, “o que a memória ama, fica eterno”. O luto, então, não é perda completa. É transformação de vínculo.

A filosofia budista, especialmente nas palavras de Thich Nhat Hanh, nos convida a olhar para o sofrimento não como algo que precisa ser eliminado a todo custo, mas como uma oportunidade de despertar. Para ele, “o sofrimento pode nos ensinar compaixão”, e mesmo a dor da perda contém sementes de compreensão. A impermanência é uma das grandes verdades budistas — tudo muda, tudo passa, inclusive o que achamos que jamais conseguiríamos suportar. E ainda assim, algo essencial permanece: o amor que se torna lembrança, e a lembrança que se torna guia.

Do lado ocidental, além da força vital que Nietzsche vê no sofrimento — “aquilo que não me mata, me fortalece” — encontramos em Kierkegaard um mergulho mais fundo na angústia. Para ele, a angústia é a “tontura da liberdade”. É aquele momento em que nos deparamos com o abismo das escolhas, das perdas, da incerteza. E não há consolo imediato. Só o enfrentamento. A angústia é, segundo ele, um sinal de que estamos vivos, conscientes, despertos diante do peso da existência.

Kierkegaard não oferece fuga — oferece profundidade. Suportar a angústia, para ele, é parte do caminho para nos tornarmos autênticos. É ali, no silêncio do insuportável, que o eu se forma. E talvez seja nesse mesmo silêncio que reconhecemos que não estamos sós: os que amamos permanecem, de algum modo, dentro de nós. O insuportável, por mais que doa, pode nos aproximar de quem verdadeiramente somos.

Voltando à vida comum: a vizinha que parece insuportável pode estar apenas descontando no mundo a dor de uma perda que não contou pra ninguém. A criança birrenta no mercado talvez só precise dormir. E a gente, quando acha que chegou ao limite, ainda respira. Porque a verdade é que quase tudo que parece insuportável se revela, com o tempo, apenas... difícil.

Difícil não é o mesmo que impossível.

O “aparentemente” da expressão é nossa salvação. Ele sugere que talvez, por trás da aparência, haja uma possibilidade escondida. Uma brecha. Um futuro. Algo que agora parece sufocar, mas amanhã pode até virar lembrança. E até — quem sabe — sabedoria.

Talvez o maior ato de coragem da vida não seja vencer o insuportável, mas simplesmente suportar. Ficar. Respirar. Continuar. E lembrar — com todo o coração — que nada nos tira o que foi vivido. E que a angústia, embora pesada, é sinal de que ainda há caminho.

sábado, 7 de junho de 2025

Corrompido de Sentido

Agora vamos fazer uma jornada de reflexão, vamos falar o sobre o esvaziamento do comportamento humano...

Há dias em que as coisas não parecem erradas, mas… tortas. Não é um crime, mas algo parece fora do eixo. Um bom dia que soa automático, um abraço dado sem corpo, uma indignação que parece moda e não sentimento. A gente sente que algo mudou. E mudou mesmo. Não só os hábitos, mas o modo como sentimos e interpretamos esses hábitos. Como se os gestos humanos tivessem sido corrompidos não por maldade, mas por um certo esvaziamento interior. Estamos, aos poucos, sendo corrompidos de sentido.

A corrupção de sentido é mais sutil que a mentira. Ela não grita, não se impõe. Ela vai acontecendo pelas bordas, no excesso de repetição, na transformação do necessário em performance. O comportamento humano, nesse cenário, passa a simular o que antes nascia do íntimo: empatia, cuidado, respeito, verdade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han observa, em obras como A sociedade do cansaço e A expulsão do outro, que vivemos numa era em que o excesso de positividade e a busca constante por desempenho destroem os vínculos mais humanos. Não há mais espaço para o outro real, com sua lentidão, suas contradições. No lugar disso, surgem comportamentos estéticos, calculados, que imitam a empatia sem senti-la. Sorrir virou protocolo. Escutar virou tempo perdido. Cuidar do outro virou conteúdo para postagem.

A tecnologia, por sua vez, surgiu como extensão da inteligência e da criatividade humana — um instrumento para aliviar tarefas, expandir possibilidades e conectar pessoas. No entanto, quando utilizada sem sabedoria, ela deixa de ser ferramenta e passa a ser modelo. Em vez de servir ao humano, o humano começa a imitá-la. Tornamo-nos eficientes como algoritmos, previsíveis como linhas de código, otimizados como máquinas — e, nesse processo, nossos comportamentos também se automatizam. O gesto perde intenção, o olhar perde pausa, a fala perde silêncio. Como alertou o filósofo Günther Anders, ao refletir sobre a obsolescência do homem, há um risco real de sermos substituídos não pelas máquinas em si, mas pela forma como passamos a viver como elas. A tecnologia não corrompe por si só — mas, quando usada como substituto da relação, da reflexão e da presença, ela acelera a corrosão do sentido humano.

Nietzsche, já no século XIX, alertava sobre o perigo de viver entre máscaras. No Crepúsculo dos Ídolos, ele dizia que "todo hábito torna a mão mais espirituosa, e o espírito mais preguiçoso". Aplicando isso ao comportamento, podemos dizer que repetir gestos sem consciência nos afasta do sentido real das coisas. Tornamo-nos habilidosos em parecer humanos, sem saber mais o que isso significa.

Mas não é só crítica. Também é diagnóstico. Estamos, talvez, num momento de reinvenção do comportamento. Um cansaço profundo das simulações parece se anunciar em vozes novas. A filósofa brasileira Viviane Mosé aponta para a urgência de uma ética sensível, em que o corpo, o afeto e a escuta sejam reconectados à linguagem. Para ela, a palavra só tem força quando está ligada à experiência real. Senão, é ruído.

O desafio, então, não é só individual, mas coletivo. Não basta buscarmos o "ser verdadeiro" como um ideal pessoal — é preciso cultivar espaços onde a verdade possa sobreviver. Onde o abraço não precise ser filmado, onde o silêncio não seja constrangimento, onde o cuidado não precise de like. Onde o comportamento humano recupere, devagar, o seu conteúdo.

Ser corrompido de sentido não é um destino. É uma condição. E condições podem ser enfrentadas.

Talvez o caminho seja pequeno: reaprender o gesto. Reencantar a palavra. Refazer o contato. Não com pressa, mas com presença.

Porque o que está corrompido ainda pode ser restaurado — não com verniz, mas com alma.


Discrepância Prometeica

 

Vou falar de quando a tecnologia vai além da nossa imaginação (e responsabilidade)...

Sabe aquela sensação de que a tecnologia está correndo na sua frente, e você fica meio perdido, sem entender direito tudo o que está acontecendo? Pois é, o filósofo alemão Günther Anders (1902-1992) tinha uma ideia que explica bem essa angústia moderna. Ele chamou isso de “discrepância prometeica” — um jeito chique de dizer que somos capazes de criar coisas incríveis, mas não estamos prontos para imaginar todas as consequências que isso traz nem para lidar com elas de forma responsável.

A metáfora vem do mito de Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para dar aos humanos. Esse fogo simboliza o poder, o conhecimento, a tecnologia — algo que nos deu enorme capacidade, mas também trouxe grandes riscos. Anders percebeu que hoje, diferente de antes, a diferença entre o que conseguimos produzir e o que conseguimos compreender (ou imaginar) está enorme — é essa “discrepância prometeica”.

Exemplos do nosso dia a dia

  • Celular na mão: Temos um supercomputador no bolso capaz de acessar o mundo inteiro, mas mal imaginamos o impacto que o uso excessivo das redes sociais pode ter na nossa saúde mental, nas fake news ou na privacidade. Quem fica muito tempo olhando para a tela dá até a impressão de estar em transe — quando a chamamos de volta, parece alguém sob efeito de algum sedativo, com olhar perdido e fora de foco, desconectado do que acontece ao redor. Além disso, às vezes parece até que o aparelho está sugando a sua energia psíquica, deixando a pessoa esgotada, como se a mente fosse drenada lentamente.
  • Inteligência artificial: Criamos máquinas que aprendem sozinhas e tomam decisões, mas não sabemos bem como garantir que elas tomem decisões justas ou seguras — e ainda não imaginamos tudo que isso pode significar para empregos, segurança e até para nossa liberdade.
  • Mudanças climáticas: Sabemos que nossas escolhas diárias, como usar carro ou consumir energia, afetam o planeta. Mas, na prática, parece difícil imaginar a extensão real do problema, o que atrapalha agir com urgência.

O alerta de Günther Anders

Para Anders, essa discrepância é um problema fundamental da nossa época. Estamos “desatualizados” em relação às nossas próprias criações. Criamos armas nucleares capazes de destruir a humanidade, mas somos incapazes de imaginar concretamente o que isso significaria — e, assim, não conseguimos agir como deveríamos para evitar um desastre.

Essa distância entre o poder que temos e a consciência do que ele implica pode ser a maior ameaça que enfrentamos. E ele não quer só assustar, mas também acordar a gente para a responsabilidade de fechar essa distância.

Pensadores que conversam com Anders

Outros filósofos também abordaram temas próximos a essa discrepância prometeica. Hans Jonas, por exemplo, em O Princípio Responsabilidade, defende que nossa capacidade tecnológica superou nossa responsabilidade moral — é urgente desenvolver uma ética para a técnica. Assim como Anders, Jonas acredita que precisamos imaginar as consequências a longo prazo para preservar a humanidade.

Martin Heidegger, professor de Anders, refletiu sobre a técnica como uma forma de “desvelamento” da realidade, mas alertou para o risco de que a técnica nos domine, reduzindo o mundo e os seres humanos a recursos — o que amplia o problema da falta de controle.

Mais recentemente, pensadores como Byung-Chul Han falam da exaustão e da sobrecarga psíquica da era digital, algo que conecta com a sensação de esgotamento e “sugação de energia” que vemos no uso do celular.

Como lidar com a discrepância prometeica no dia a dia?

  1. Praticar a consciência digital: Ao usar o celular ou redes sociais, dê pausas regulares. Observe seu estado mental e físico. Se sentir o olhar perdido ou cansado, permita-se desconectar e respirar. Essa pausa ajuda a não se deixar levar pelo “transe” digital.
  2. Educar-se sobre tecnologia: Busque entender o básico das tecnologias que usa — como algoritmos, inteligência artificial e coleta de dados. Assim, fica mais fácil imaginar suas consequências e tomar decisões mais conscientes.
  3. Questionar o consumo e o impacto: Ao fazer escolhas diárias, como consumir energia ou usar transporte, pergunte-se qual o impacto real no planeta. Pequenas mudanças, somadas, podem ajudar a diminuir o ritmo da “máquina” que nos ultrapassa.
  4. Fomentar o diálogo e a ética: Participe de debates, grupos ou comunidades que discutem os efeitos da tecnologia na sociedade. Incentive políticas públicas que priorizem o controle ético da inovação.
  5. Valorizar o contato humano e a experiência direta: Em meio à digitalização, cultive momentos presenciais, contato com a natureza e experiências que conectem corpo e mente, ajudando a equilibrar o descompasso com a tecnologia.

Pensar e agir além da tecnologia

A discrepância prometeica nos chama a olhar com mais atenção para o que fazemos, para não deixar que a tecnologia vire uma caixa preta cheia de consequências invisíveis. Ela é um convite a aprender a imaginar melhor, sentir o impacto do que criamos e assumir responsabilidade — não só técnica, mas ética.

Porque, no fim das contas, não basta ter o fogo. É preciso saber como usá-lo sem queimar tudo ao redor.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Pecado Original

O que fizemos de errado antes mesmo de nascer?

Parece injusto carregar uma culpa que não foi escolhida. Como se nascêssemos devendo algo. Como se a vida, em seu primeiro fôlego, já nos colocasse sob suspeita. Estamos falando do chamado pecado original — esse conceito antigo, estranho, e ainda hoje ressoante, que diz que herdamos de Adão e Eva, lá no Éden, uma falha moral de fábrica. Mas e se olhássemos para isso de outro jeito? E se essa culpa não fosse um castigo, mas um modo simbólico de nos contar algo profundo sobre a condição humana?

Herança sem testamento

Na tradição cristã, o pecado original nasce com a desobediência: comer o fruto proibido, desafiar a ordem divina. Mas o problema não é só o ato, é o que ele revela: o desejo de conhecer, escolher, experimentar. Não é estranho que o primeiro erro tenha sido querer saber mais? O pecado, então, não seria um acidente, mas uma revelação: o humano é, por natureza, um ser inquieto. E talvez o pecado original seja isso — não um erro cometido, mas uma vocação inevitável para o excesso, o risco, o desvio.

Não escolhemos ser assim, apenas somos. Como dizia Agostinho, “em Adão todos pecaram” — o que soa como uma condenação universal, mas também como um retrato da fragilidade que nos une. Não é apenas um castigo: é a lembrança de que somos falhos, e talvez por isso tão humanos.

Um mito sobre a liberdade

Se tirarmos a linguagem religiosa e ficarmos com a estrutura simbólica, o pecado original pode ser lido como o nascimento da liberdade. Adão e Eva não erram porque são maus, mas porque são livres. A serpente, o fruto, o ato de comer — tudo isso compõe uma cena inaugural de escolha. Um universo sem pecado original seria um mundo de bonecos obedientes, de seres sem conflito. Seria, talvez, um jardim sem humanidade.

A expulsão do paraíso é, então, a entrada na realidade. O Éden é infância, segurança, ilusão de harmonia. Fora dele, encontramos a vida: o trabalho, o sofrimento, o tempo, a morte — e também o amor, a ética, a construção de sentido. Ser lançado no mundo, como diria Heidegger, é existir em angústia, mas também em possibilidade.

A culpa como condição

O psicanalista Jacques Lacan observava que a culpa não nasce apenas do que fazemos, mas do próprio fato de desejar. Desejar é se comprometer com a falta, com aquilo que não temos e que nos move. Nesse sentido, o pecado original seria o símbolo do desejo que funda o sujeito. Não desejamos por sermos culpados. Somos culpados porque desejamos. A culpa original é a sombra da liberdade: aparece assim que escolhemos ser alguém.

E se não for culpa, mas ponto de partida?

Talvez devêssemos deixar de ver o pecado original como uma dívida e passar a vê-lo como um reconhecimento: de que ninguém começa do zero, de que a existência já vem atravessada por histórias que não escolhemos, de que o mundo nos molda antes mesmo de sabermos quem somos. É injusto? Sim. Mas é também uma chance de compreender que crescer é lidar com o que herdamos — não apenas genes, mas dores, pesos, narrativas.

O filósofo brasileiro Rubem Alves dizia que “o paraíso não é lugar onde não há dor, mas onde a dor faz sentido”. Talvez o pecado original, longe de ser um erro isolado no passado, seja uma metáfora para nossa condição atual: a de quem vive entre a queda e o salto, entre o erro e a reconstrução.

O pecado original pode não ser literal. Mas é real no sentido em que todos nós, de algum modo, nascemos num mundo que já nos antecede, com suas regras, seus limites, suas faltas. A questão nunca foi evitar o pecado, mas descobrir o que fazemos com ele. Afinal, se não podemos apagar a mancha, talvez possamos transformá-la em arte.


O Ramo de Ouro

O Eco do Sagrado e a Morte do Rei — Pensando “O Ramo de Ouro” com James Frazer

Quem nunca jogou sal por cima do ombro ou hesitou antes de quebrar um espelho? Rituais nos rodeiam, mesmo quando achamos que somos modernos demais para eles. É curioso pensar que, por trás desses gestos supersticiosos, há resquícios de uma lógica milenar que buscava controlar o caos com símbolos, gestos e sangue.

É nesse terreno fértil e sombrio que mergulha O Ramo de Ouro, livro monumental do antropólogo escocês James George Frazer (1854-1941), publicado originalmente em 1890. A obra — que parte da investigação de um antigo ritual no bosque de Nemi, onde um sacerdote-rei era morto por seu sucessor — tornou-se uma das primeiras grandes tentativas de compreender as raízes da religião, do mito e da cultura como estruturas universais. Mais do que etnografia comparada, Frazer criou uma mitologia da mente humana.

O sacrifício como linguagem: o rei morre para que o mundo continue

O enigma inicial do rei de Nemi — cuja vida dependia de manter o ramo de ouro e derrotar seu assassino futuro — transforma-se, na leitura de Frazer, em uma chave interpretativa para entender uma miríade de rituais de morte e regeneração em todo o mundo. Em tribos africanas, entre sacerdotes incas, nas festas agrícolas do oriente, Frazer vê padrões recorrentes: o soberano como símbolo da fertilidade, que precisa morrer para que a natureza renasça.

Essa lógica, além de antropológica, é filosófica. O corpo do rei é símbolo do mundo: envelhece, entra em crise, e deve ser substituído para que o ciclo continue. O ritual, então, funciona como uma linguagem simbólica de reinício. A repetição da morte é, paradoxalmente, uma afirmação da vida.

Magia, religião, ciência: camadas da razão humana

Frazer organizou seu estudo em torno de três formas de pensamento humano: magia, religião e ciência. Para ele, a magia era uma tentativa primitiva de controlar o mundo por meio da analogia (como se fosse uma tecnologia simbólica). A religião emerge quando se reconhece um mundo comandado por deuses e vontades invisíveis. E a ciência seria, finalmente, a forma “correta” de compreender e operar a realidade.

Mas essa linearidade evolutiva foi duramente criticada. O antropólogo estruturalista Claude Lévi-Strauss, por exemplo, viu em O Ramo de Ouro um exemplo brilhante de etnologia, mas rejeitou a ideia de que o pensamento “selvagem” fosse menos racional que o científico — para ele, trata-se apenas de lógicas diferentes, estruturadas em códigos distintos.

Da mesma forma, Mircea Eliade, filósofo e historiador das religiões, admirava a vastidão simbólica da obra de Frazer, mas a reinterpretou em termos da oposição entre tempo profano e tempo mítico. Para Eliade, o sacrifício ritual não era erro primitivo, mas uma forma de reatualizar a criação do mundo — um retorno ao tempo sagrado da origem.

Jung e o inconsciente simbólico

Entre os mais impactados por O Ramo de Ouro esteve Carl Gustav Jung, que viu no livro uma mina de ouro simbólica. Jung não o leu como simples antropologia, mas como testemunho de uma psique arquetípica. O rei sacrificado, a árvore dourada, o ciclo de morte e renascimento — tudo isso representava, para Jung, expressões do inconsciente coletivo.

Jung considerava que esses rituais antigos não desapareceram, mas foram reinternalizados na alma moderna, manifestando-se em sonhos, mitos e narrativas. O ramo de ouro, nesse sentido, torna-se símbolo de iniciação psíquica: o ego que precisa morrer para que o self renasça.

A psicologia profunda de Jung e a mitologia comparada de Frazer se encontram na intuição comum de que a humanidade vive através de símbolos — e que esses símbolos, mesmo quando esquecidos, continuam a operar silenciosamente em nós.

A cultura moderna ainda carrega o ramo

Não foram apenas antropólogos e psicólogos que se encantaram com Frazer. O Ramo de Ouro influenciou fortemente T.S. Eliot, cuja obra-prima modernista The Waste Land (1922) se constrói justamente sobre a imagem do mundo árido, à espera de um sacrifício redentor. Eliot usou a estrutura simbólica de Frazer para dar forma ao desespero espiritual do século XX.

Também Sigmund Freud dialogou com o livro, especialmente na elaboração de Totem e Tabu (1913), onde interpreta o assassinato do pai primordial como origem da cultura. A conexão entre sexualidade, morte e sacralidade — tão presente em Frazer — é base para toda a psicanálise freudiana.

Até mesmo cineastas e romancistas beberam da fonte: da cena do bosque em O Poderoso Chefão ao horror pagão de The Wicker Man, o imaginário de Frazer é constantemente reciclado. Ele criou um léxico simbólico ocidental, mesmo que isso tenha sido feito à revelia do próprio Ocidente.

O ramo continua a florescer

O Ramo de Ouro é mais do que uma obra sobre o passado: é um espelho simbólico do presente. Mesmo que o rei não seja mais sacrificado num bosque, seguimos sacrificando versões de nós mesmos, buscando sentido, repetindo gestos com raízes invisíveis.

Frazer pode ter sido eurocêntrico e evolucionista, sim — mas sua obra sobreviveu porque tocou algo fundamental: a intuição de que o humano vive em busca de passagem. Seja para outro mundo, para uma nova estação, para uma vida melhor ou para o autoconhecimento, ainda precisamos do ramo — dourado, raro, impossível — que nos permita atravessar o invisível.

Como nos lembrou Jung, não abandonamos nossos rituais: apenas os tornamos internos. Como escreveu Eliot: “Esses fragmentos eu reuni contra minha ruína.” E como apontou Frazer, talvez a civilização não seja o fim dos mitos, mas sua forma mais sofisticada.

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Sujeito Normativo

 


O que há por trás de quem obedece (ou não)!

A gente passa a vida achando que está escolhendo. Desde cedo nos perguntam o que queremos ser quando crescer, como se a escolha fosse uma estrada aberta. Mas, se olharmos com mais atenção, muitas das nossas decisões já vieram meio prontas: o modo como nos vestimos, o jeito de falar, até a forma de amar — tudo parece já ter uma receita, mesmo antes de perguntarmos qual é o gosto.

Nesse cenário, surge uma figura discreta, mas poderosa: o sujeito normativo. Ele não é alguém específico, mas um tipo de presença que habita todos nós. É aquele que atua conforme as normas, internaliza as regras, se identifica com o que é esperado. Mas quem é esse sujeito, afinal? E, mais importante, ele é livre?

A construção do sujeito que se adapta

O sujeito normativo nasce de uma rede invisível de expectativas. Desde a infância, aprendemos o que é "certo", o que "pega bem", o que "deve ser feito". Somos guiados não por ordens diretas, mas por uma malha de sugestões sutis, recompensas emocionais e castigos simbólicos. A norma não grita, ela sussurra — e é exatamente aí que está sua força.

Michel Foucault nos ajuda a entender essa dimensão quando fala do poder disciplinar: o sujeito é produzido, ele não preexiste à norma. Ao se alinhar com os padrões, o sujeito normativo se realiza — e ao mesmo tempo, se limita. O curioso é que esse processo é quase sempre inconsciente: obedecemos sem saber que estamos obedecendo.

Louis Dumont: o sujeito entre o todo e o indivíduo

O antropólogo francês Louis Dumont nos ajuda a entender como as normas sociais moldam o próprio valor que damos ao sujeito. Em sua análise das culturas ocidentais e orientais, Dumont destaca a diferença entre duas formas de organização social: holismo e individualismo.

No holismo (mais comum em sociedades tradicionais, como na Índia), o indivíduo existe em função do todo — a coletividade, o grupo, a ordem social. Já no individualismo (mais típico do Ocidente moderno), o sujeito é concebido como autônomo, separado, dotado de direitos próprios.

Mas Dumont chama atenção para um paradoxo: mesmo onde o individualismo parece reinar, como nas democracias liberais, ele depende de um conjunto de normas culturais que moldam esse sujeito autônomo. Ou seja, até a ideia de “ser livre” já vem normatizada. O sujeito normativo moderno, portanto, não é menos normativo do que o tradicional — ele apenas internalizou novas formas de obediência, como a busca pela autenticidade, pela autorrealização, pelo sucesso pessoal.

Esse olhar antropológico revela que a norma muda de forma, mas nunca desaparece. O que chamamos de “escolha pessoal” frequentemente é apenas uma forma moderna de cumprir o que o grupo espera de nós.

O dilema entre pertencimento e autenticidade

Ser um sujeito normativo tem vantagens claras: ele se encaixa, circula com fluidez, é bem-visto. Mas há um preço. À medida que nos tornamos aquilo que esperam de nós, deixamos de escutar o que poderíamos ter sido. A norma, quando muito apertada, sufoca a singularidade. Quando vivemos apenas para cumprir o papel social que nos foi oferecido, nos tornamos personagens no teatro do previsível.

A filósofa Judith Butler acrescenta que as normas não apenas regulam o comportamento, mas criam a própria possibilidade de existência reconhecida. Só somos "alguém" se nos alinhamos minimamente ao que é considerado um "alguém possível". É um jogo de reconhecimento. E, às vezes, a margem entre ser reconhecido e ser livre é estreita.

A potência de desviar

Mas nem tudo está perdido. Há momentos em que o sujeito normativo tropeça — e é nesse tropeço que ele pode se reinventar. Quando uma pessoa diz “não” a um padrão que a oprime, não é apenas um ato de negação; é também uma criação. A transgressão, quando lúcida, abre espaço para novas formas de ser.

O filósofo brasileiro Vladimir Safatle nos convida a pensar que a transformação social exige esse gesto de ruptura, de recusa à normalização. O sujeito crítico, que tensiona as normas em vez de simplesmente segui-las, torna-se agente de mudança. Não para viver à margem por vaidade, mas para alargar as bordas do possível.

Entre a norma e o desejo

No fundo, todos nós vivemos esse equilíbrio instável entre seguir e reinventar. O sujeito normativo não é nosso inimigo — ele é parte de nós, aquela parte que busca acolhimento, sentido, pertencimento. Mas é preciso não esquecer da outra metade: o sujeito desejante, que sonha com o que ainda não tem nome.

Louis Dumont nos ajuda a entender que até o desejo de ser único pode ser, paradoxalmente, uma norma social. Talvez o desafio não seja abandonar a norma, mas dançar com ela. Saber quando ela nos serve e quando nos aprisiona. E, sobretudo, lembrar que viver de verdade é também inventar novas normas, feitas sob medida para aquilo que ainda não fomos — mas podemos vir a ser.