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sexta-feira, 4 de abril de 2025

Teoria das Mônadas

Certa vez, enquanto esperava um café num balcão apertado, percebi algo curioso. Havia ao meu lado um sujeito absorto no celular, outro lendo um livro amarelado, uma mulher distraidamente batucando os dedos na mesa, e eu, observando tudo. Cada um parecia imerso em seu próprio universo, vivendo realidades que, embora lado a lado, não necessariamente se tocavam. Foi então que me veio à cabeça Leibniz e sua Teoria das Mônadas.

Gottfried Wilhelm Leibniz, matemático e filósofo do século XVII, concebeu as mônadas como entidades indivisíveis, essências autônomas que compõem a realidade. Para ele, o mundo não era feito de matéria inerte, mas de centros de força e percepção. Cada mônada continha em si uma representação do todo, sem interação causal direta com as demais. O que parecia interação não passava de uma harmonia preestabelecida, orquestrada por Deus.

Essa idéia de realidades paralelas dentro de um mesmo espaço não poderia ser mais pertinente hoje. Imagine um vagão de metrô: cada passageiro conectado a um fone de ouvido, uma conversa de WhatsApp, um vídeo no YouTube. São mônadas contemporâneas, coexistindo sem real comunicação, cada um encerrado em sua própria narrativa. Mas se Leibniz estivesse aqui, talvez dissesse que ainda assim compartilhamos um elo invisível. Afinal, por mais isolados que pareçamos, todos refletimos, de alguma maneira, uma mesma realidade.

Mas e se subvertêssemos a ideia? E se as mônadas, em vez de ilhas fechadas, fossem capazes de abrir pequenas frestas umas para as outras? Talvez o mundo moderno não precise de um Deus que harmonize tudo de antemão, mas de encontros autênticos que permitam que essas realidades se contaminem. Ao olharmos o celular do lado, sorrirmos para o leitor do livro amarelado, ouvirmos o batuque descompromissado da vizinha de mesa, quem sabe conseguimos atravessar as fronteiras dessas micro-realidades. Se as mônadas não têm janelas, talvez seja porque nunca tentamos abri-las.

Fiquei me perguntando se esta teoria atualmente é coerente frente ao conhecimento contemporâneo. A Teoria das Mônadas de Leibniz, apesar de ser uma concepção metafísica fascinante, entra em choque com algumas premissas do conhecimento contemporâneo, especialmente nas ciências naturais e na filosofia da mente. No entanto, há aspectos dela que ainda podem ser interpretados de maneira relevante.

Desafios da Teoria das Mônadas no Conhecimento Atual

A Interação Física entre os Corpos

Leibniz postulava que as mônadas não tinham janelas, ou seja, não interagiam fisicamente entre si. Contudo, a física contemporânea, baseada na teoria quântica e na relatividade, sustenta que a interação entre partículas é essencial para a formação da realidade. O universo não é composto de entidades isoladas, mas de sistemas emaranhados que afetam uns aos outros.

O Problema da Consciência e da Inteligência Artificial

A ideia de que cada mônada contém uma representação do todo ressoa, de certa forma, com o conceito de informação na neurociência e na computação. No entanto, não há evidências de que entidades individuais contenham conhecimento absoluto ou sejam pré-programadas por uma harmonia divina. A cognição e a percepção surgem da interação e da plasticidade neural, algo bem diferente da visão monadológica de Leibniz.

A Evolução e a Emergência de Propriedades

A biologia moderna sugere que a complexidade surge de processos evolutivos e interações ambientais, não de entidades auto-contidas. A emergência de propriedades, um conceito fundamental em ciências da complexidade, contradiz a ideia de que cada mônada já contém tudo o que precisa para existir de forma independente.

Releituras Possíveis

Mônadas como Sistemas de Informação

Podemos reinterpretar as mônadas como unidades de informação dentro de redes, como na teoria da computação e na cibernética. Cada nó de uma rede (seja um indivíduo em uma sociedade ou um neurônio no cérebro) pode conter representações parciais do sistema, funcionando como uma mônada contemporânea.

A Harmonia Preestabelecida como Sincronicidade

Em vez de um plano divino, a ideia de uma “harmonia” pode ser lida através da sincronicidade de Jung ou até mesmo dos padrões emergentes nas redes sociais e na inteligência artificial, onde os algoritmos organizam a realidade de forma invisível, criando conexões inesperadas.

A Mônada como Consciência Individualizada

Embora saibamos que existe troca de informação entre consciências, a experiência subjetiva ainda permanece um mistério. Cada ser humano vive dentro de sua perspectiva única, interpretando o mundo à sua maneira, o que pode ser visto como uma versão moderna da mônada leibniziana.

Em resumo, a Teoria das Mônadas não se sustenta no rigor científico atual, mas pode ser reinterpretada para dialogar com questões contemporâneas sobre informação, cognição e redes de interconexão. Leibniz viu um mundo de entidades fechadas, mas talvez o futuro nos mostre que, embora nossas perspectivas sejam únicas, nossas "janelas" para o mundo estão sempre abertas – mesmo que parcialmente.


Ilusão do Controle

A grande questão atual é: Liberdade ou Algoritmo?

Vivemos na era da hiperconectividade, onde cada decisão que tomamos parece estar impregnada por uma sensação de escolha autônoma e consciente. No entanto, um olhar mais atento sobre nossa relação com a tecnologia revela um paradoxo inquietante: estamos realmente exercendo nossa liberdade ou somos apenas peças movidas por um tabuleiro algorítmico que antecipa, orienta e molda nossas escolhas?

A filosofia do controle sempre esteve no cerne das discussões sobre a liberdade. Desde os tempos de Platão, com sua caverna metafórica, até Michel Foucault e suas reflexões sobre o biopoder e a sociedade disciplinar, a humanidade tem questionado até que ponto suas ações são genuinamente autônomas. Na contemporaneidade, esse dilema assume um novo contorno: a inteligência artificial e os algoritmos das redes sociais tornaram-se arquitetos invisíveis da nossa realidade cotidiana.

A personalização dos conteúdos que consumimos é um exemplo claro desse fenômeno. O que parece ser uma facilidade — a curadoria automática que nos entrega músicas, notícias e produtos sob medida —, também restringe nossa exposição a diferentes perspectivas. O conceito de "bolhas de informação", popularizado por Eli Pariser, evidencia como os algoritmos nos enclausuram em um ecossistema onde nossas próprias preferências passadas determinam nosso futuro. Assim, não escolhemos verdadeiramente — apenas seguimos um caminho previamente pavimentado por padrões de consumo e comportamento que os sistemas identificam e reforçam.

Zygmunt Bauman, ao falar da modernidade líquida, destacou como as estruturas sociais tornaram-se voláteis e imprevisíveis. No entanto, a lógica algorítmica desafia essa fluidez ao transformar nossas interações em previsões estatísticas altamente confiáveis. Assim, o livre arbítrio se torna questionável: se tudo o que escolhemos é, na verdade, o resultado de sugestões e predições baseadas em nosso histórico digital, ainda podemos falar em liberdade?

A resposta a essa indagação não é simples. Foucault nos lembra que toda forma de poder também abre brechas para a resistência. Se, por um lado, somos influenciados por uma arquitetura invisível de dados, por outro, podemos cultivar uma consciência crítica e buscar ativamente a diversidade de informação. Em outras palavras, reconhecer a existência dos algoritmos e seus impactos sobre nossas decisões já é um primeiro passo para recuperar parte do controle sobre nossa própria subjetividade.

Em um mundo onde a ilusão de autonomia é meticulosamente mantida por um sistema de dados, talvez a verdadeira liberdade esteja na capacidade de questionar, de escapar — mesmo que temporariamente — da previsibilidade algorítmica e experimentar o inesperado. A próxima vez que você der play em uma música recomendada, ler uma notícia sugerida ou comprar um produto indicado, pergunte-se: foi você quem escolheu ou foi o algoritmo que escolheu por você?


quinta-feira, 3 de abril de 2025

Semiótica na Filosofia

Há dias em que tudo parece um enigma. Você encontra um velho amigo na rua, mas algo em seu rosto sugere que ele não está bem. A entonação da voz do chefe em um simples "bom dia" pode carregar um peso inesperado. A maneira como um estranho segura um livro no metrô pode indicar mais sobre sua personalidade do que qualquer apresentação formal. Em cada uma dessas situações, algo está sendo dito sem palavras explícitas. É nesse campo minado da interpretação que entra a semiótica.

A semiótica é a ciência dos signos, mas sua importância na filosofia vai muito além da mera decodificação de símbolos. Desde os gregos até os pensadores contemporâneos, o estudo dos signos moldou debates sobre conhecimento, linguagem, percepção e realidade. Platão e Aristóteles já discutiam a relação entre palavras e ideias, mas foi somente com pensadores como Ferdinand de Saussure e Charles Peirce que a semiótica ganhou contornos sistemáticos. Enquanto Saussure via a linguagem como um sistema fechado de signos arbitrários, Peirce entendia os signos como parte de um jogo infinito de significações que nunca se fixam definitivamente.

Esse jogo semiótico nos arrasta para uma questão desconcertante: interpretamos o mundo ou o mundo nos interpreta? Se tudo o que conhecemos é mediado por signos, a própria realidade se torna uma rede de interpretações sobre interpretações. Michel Foucault, ao analisar discursos e saberes, mostrou como os signos estruturam as relações de poder. Roland Barthes nos fez perceber que até o ato mais banal — escolher uma roupa, assistir a um filme ou postar uma foto — é carregado de significados culturais.

A vida cotidiana é um tabuleiro semiótico. Um simples gesto pode significar resistência ou submissão, uma escolha de palavras pode criar afinidades ou barreiras. E, no fundo, somos todos jogadores nesse tabuleiro, tentando decifrar os códigos dos outros enquanto fabricamos os nossos próprios.

Talvez a maior provocação da semiótica na filosofia seja esta: se todo significado é construído e interpretado, então o que chamamos de "realidade" é apenas um campo de disputas simbólicas. Será que há algo além dos signos? Ou a própria busca por um significado último é apenas mais um signo dentro do jogo infinito da interpretação?

 


Construir Pontes

A ponte mais importante que construí na vida não era de concreto nem de aço. Era invisível, mas mais sólida que qualquer estrutura física. Foi uma ponte entre duas pessoas que, por muito tempo, ficaram separadas por um abismo de orgulho, mal-entendidos e silêncios prolongados. Talvez todos já tenhamos vivido isso: aquele momento em que uma simples palavra ou gesto cria uma conexão que parecia impossível. Mas o que significa realmente "construir pontes"?

A Arte de Criar Conexões

Construir pontes é um ato de superação. Pode ser entre indivíduos, culturas, ideias ou até mesmo dentro de nós mesmos. O conceito carrega um sentido de travessia e de encontro, mas também de esforço e intencionalidade. Diferente dos muros, que se erguem para proteger, as pontes são estruturas que desafiam barreiras naturais e artificiais, permitindo trânsito e troca.

Na filosofia, há paralelos com a dialética de Hegel, que via o desenvolvimento do pensamento como uma síntese entre opostos. Uma ponte é exatamente isso: a síntese entre duas margens que, sem ela, permaneceriam isoladas. Também podemos recorrer a Martin Buber, que distinguia as relações "Eu-Tu" das "Eu-Isso". Construir pontes é transformar relações objetificadas em relações autênticas, onde o outro deixa de ser um estranho e se torna um interlocutor genuíno.

O Desafio da Travessia

Nem todas as pontes são fáceis de construir. Muitas vezes, exigem renúncia, paciência e até um certo risco. No mundo contemporâneo, cada vez mais fragmentado, onde discursos polarizados moldam a percepção do outro como inimigo, a metáfora da ponte se torna mais relevante do que nunca. Como dialogar com alguém que pensa diferente sem cair na armadilha da hostilidade? Como construir pontes quando tudo parece ruínas?

Talvez a resposta esteja na escuta ativa. O filósofo francês Paul Ricoeur falava sobre a importância da hermenêutica, a arte de interpretar não apenas textos, mas também o outro. Compreender o outro exige interpretar sua história, sua dor e suas razões. Somente assim se pode encontrar um ponto de conexão legítimo.

Pontes Interiores

Às vezes, a construção mais difícil é aquela que fazemos dentro de nós. Como conectar nossa razão com nossa emoção? Nossa memória com nosso presente? Nossa identidade com nossa constante mudança? O ser humano é, por natureza, uma coleção de margens que precisam de pontes.

A tradição budista ensina que a mente é como um rio: flui, mas pode ser atravessada se soubermos construir as passagens certas. A meditação, a reflexão e a aceitação são formas de engenharia interior que nos ajudam a transpor nossas próprias contradições e a fazer as pazes com quem somos.

Ser um Engenheiro de Pontes

Construir pontes não é um trabalho exclusivo de engenheiros civis. Todos somos, de alguma forma, arquitetos de conexões. Seja nos pequenos gestos do cotidiano, no esforço de compreender o outro ou na busca por integrar nossas partes fragmentadas, a travessia é sempre um movimento ativo.

Em um mundo que parece mais interessado em erguer muros, talvez o verdadeiro ato de rebeldia seja tornar-se um construtor de pontes. Afinal, é na travessia que nos tornamos mais humanos.


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Antípodas da Resignação

Se há algo que me incomoda profundamente, é a resignação. Aquele estado de aceitação passiva diante das circunstâncias, como se estivéssemos presos a um roteiro escrito por uma mão invisível e impiedosa. Mas e se, ao invés de nos curvarmos ao inevitável, buscássemos as antípodas da resignação? Lugares onde o espírito se rebela, onde a vontade se inflama e o ser humano se reinventa?

A resignação é muitas vezes confundida com maturidade ou sabedoria. Há quem diga que aceitar o que não pode ser mudado é um sinal de crescimento. De fato, há situações intransponíveis que exigem nossa adaptação. Mas há uma linha tênue entre a adaptação inteligente e a aceitação servil. O problema da resignação está na sua tendência de anestesiar o desejo de mudança. Ela pode ser um disfarce para a covardia, uma desculpa elegante para a inércia.

Nas antípodas da resignação, encontramos a insubmissão criativa. Não se trata de mera rebeldia vazia, mas de uma recusa ativa e inteligente diante do que nos é imposto. A história está repleta de exemplos de indivíduos que desafiaram a resignação e transformaram suas vidas – e as dos outros. Pensemos em Prometeu, que roubou o fogo dos deuses para iluminar os homens, mesmo sabendo da punição que o aguardava. Ou em Rosa Parks, que recusou-se a ceder seu lugar no ônibus para um homem branco, um gesto simples, mas que reverberou como um trovão.

Hannah Arendt nos alerta para os perigos da banalidade do mal, um fenômeno que ocorre justamente quando as pessoas aceitam passivamente as estruturas que lhes são impostas, sem reflexão ou questionamento. A resignação, nesse sentido, pode ser um terreno fértil para a manutenção de sistemas opressores. O pensamento crítico e a ação são, para Arendt, os pilares fundamentais da liberdade. Só ao rompermos com a aceitação mecânica do mundo ao nosso redor é que podemos construir algo verdadeiramente novo.

A filosofia também nos oferece perspectivas fascinantes. Friedrich Nietzsche alertava para o perigo do niilismo passivo, aquela resignação que se disfarça de sabedoria, mas que na verdade oculta uma profunda desistência. Para ele, a grande tarefa humana é afirmar a vida, criar valores próprios e superar-se constantemente. Já Simone de Beauvoir via na resignação um dos principais entraves à liberdade, pois ao aceitarmos um destino fixo, deixamos de nos construir como sujeitos plenos.

Mas como escapar da resignação sem cair na exaustão de uma luta incessante? Talvez a resposta esteja no equilíbrio entre resistência e discernimento. Há batalhas que valem cada gota de energia e outras que apenas drenam sem retorno. Saber onde investir nossa potência vital é o verdadeiro desafio. E, principalmente, compreender que não se resignar não significa ser contra tudo e todos, mas sim estar disposto a viver com autenticidade e vigor.

O mundo já tem conformismo demais. Que busquemos, então, as antípodas da resignação: os territórios da criatividade, da ousadia e da transformação. Pois viver plenamente não é apenas existir – é contestar, reinventar e, acima de tudo, recusar o papel de figurante no espetáculo da própria vida.


Noção de Intencionalidade

Estava distraído, mexendo no celular, quando percebi que alguém me olhava fixamente. Não era um olhar casual, mas algo carregado de sentido. Havia uma intenção ali, mesmo que eu não soubesse qual. Por um instante, senti que aquele olhar me atravessava e me fazia presente no mundo de outra pessoa. Foi então que me veio à mente: o que significa ter uma intencionalidade? Será que todo ato de consciência está direcionado a algo? E mais: será que aquilo que direcionamos a nossa atenção também nos transforma?

A intencionalidade, um conceito central na fenomenologia, foi amplamente explorada por Edmund Husserl, que a definiu como a característica fundamental da consciência: toda consciência é consciência de algo. Ou seja, nunca estamos simplesmente "conscientes", estamos sempre voltados para um objeto, uma ideia, uma sensação. O curioso é que isso não se aplica apenas à percepção, mas também à memória, à imaginação e até aos nossos devaneios. Quando me pego pensando no passado ou sonhando acordado com o futuro, minha mente não está vagando ao acaso; ela está orientada por intenções, por sentidos que dou às coisas.

Mas o que acontece quando não conseguimos nomear aquilo para o qual estamos direcionados? Muitas vezes sentimos um incômodo, um desconforto inexplicável, uma angústia vaga que parece estar "mirando" algo, mas sem que consigamos identificar o alvo. Aí entra um aspecto fascinante da intencionalidade: ela pode ser tão consciente quanto inconsciente. Freud, por exemplo, mostrou como certas intenções reprimidas se manifestam de forma indireta em sonhos, lapsos e atos falhos.

Além disso, a intencionalidade não é unilateral. Se olho para uma paisagem e ela me desperta uma emoção, posso dizer que minha consciência intencionalmente se dirigiu à paisagem. Mas e se a paisagem também "me olha de volta"? Não no sentido literal, claro, mas no sentido de que certas experiências parecem nos interpelar, como se exigissem algo de nós. Sartre explorou essa dimensão da intencionalidade ao afirmar que o olhar do outro nos constitui: não sou apenas aquele que olha, mas também aquele que é olhado e, portanto, reconhecido e transformado.

A intencionalidade também tem um lado prático. No cotidiano, a forma como direcionamos nossa atenção define o que percebemos como relevante ou irrelevante. Se ando pela rua absorto em meus pensamentos, não noto as pequenas interações ao meu redor. Se, ao contrário, estou atento, percebo os gestos, os olhares, os detalhes que dão cor à vida. Nesse sentido, a intencionalidade é um filtro, um mecanismo que seleciona e organiza nossa experiência do mundo.

Podemos, então, dizer que viver é um constante exercício de intencionalidade. Escolhemos a que (ou a quem) damos atenção, e isso define, em grande parte, nossa existência. Mas será que temos total controle sobre isso? Ou será que também somos arrastados por intenções que não escolhemos? Aqui, a filosofia nos convida a refletir: talvez a verdadeira liberdade não esteja em ter controle absoluto sobre nossas intenções, mas em reconhecer que somos, ao mesmo tempo, agentes e receptores de intenções, navegando entre aquilo que escolhemos e aquilo que nos escolhe.

Afinal, quem nunca sentiu que um olhar, uma palavra ou até um pensamento inesperado mudou o rumo de sua consciência? Talvez a intencionalidade não seja apenas um traço da consciência, mas um fio invisível que nos liga ao mundo, entre o que queremos ver e o que se impõe à nossa visão.


terça-feira, 1 de abril de 2025

Reconhecer Sem Conhecer

 

Eu já vi esse rosto antes. Talvez numa reunião, no ônibus, ou passando apressado na rua. Reconheço a expressão, a forma de andar, o tom de voz. Mas se me pedirem para dizer algo sobre essa pessoa além do superficial, sou obrigado a admitir: não conheço.

Essa situação, tão comum e aparentemente trivial, esconde um paradoxo profundo da existência humana. Como é possível reconhecer alguém sem conhecê-lo? Será que a familiaridade visual, a intuição sobre um comportamento ou até uma sensação inexplicável de déjà vu são suficientes para criar uma relação de conhecimento?

A distinção entre reconhecimento e conhecimento é mais do que um detalhe semântico; ela toca em algo essencial sobre como construímos nossas interações e nossa percepção do mundo. O reconhecimento é imediato, automático, fruto de padrões que nosso cérebro armazena e utiliza para navegar na realidade. O conhecimento, por outro lado, exige tempo, troca, experiência compartilhada.

O filósofo alemão Martin Heidegger, ao falar sobre o conceito de "ser-no-mundo", sugere que estamos constantemente em uma relação de familiaridade com nosso entorno, mesmo sem compreendê-lo plenamente. Ele distingue entre "conhecimento superficial", que é utilitário e baseado na repetição, e o "conhecimento autêntico", que envolve um mergulho mais profundo no ser do outro. Ou seja, reconhecer alguém pode ser apenas um reflexo de nossa passagem pelo mundo, enquanto conhecer exige um envolvimento existencial.

Na sociedade contemporânea, a lógica do reconhecimento sem conhecimento se intensifica. Seguimos pessoas em redes sociais, lemos fragmentos de suas vidas, temos uma falsa sensação de proximidade. Quantas vezes vemos alguém na internet e sentimos que sabemos muito sobre essa pessoa, mas, na verdade, só conhecemos recortes cuidadosamente editados? O reconhecimento, aqui, se torna uma ilusão de conhecimento.

A experiência cotidiana reforça essa dicotomia. Pensemos no ambiente de trabalho: colegas que vemos diariamente, cujas vozes e hábitos são familiares, mas com quem nunca trocamos mais do que um "bom dia" protocolar. Na vizinhança, encontramos rostos que se repetem no elevador, mas que continuam sendo completos estranhos. Até mesmo em círculos sociais, há aqueles que fazem parte de nossa rotina, mas cujo mundo interno nos permanece inacessível.

O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade expressa essa angústia no poema "Mãos Dadas": "Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos." Essa sensação de proximidade distante, de rostos reconhecíveis mas não conhecidos, pode ser encarada como um chamado à autenticidade nas relações.

Para romper esse ciclo de reconhecimento sem conhecimento, é necessário um esforço ativo de aproximação. Conhecer exige escuta, curiosidade, disposição para o encontro. Talvez a chave esteja em uma prática cada vez mais rara: o diálogo genuíno. O simples ato de perguntar algo além do esperado, de se interessar pela história do outro, pode transformar um rosto conhecido em uma presença significativa.

No final, a questão não é apenas sobre os outros, mas sobre nós mesmos. Somos reconhecidos por muitos, mas quantos realmente nos conhecem? A profundidade das conexões humanas não depende apenas da frequência com que cruzamos o caminho de alguém, mas do quanto nos permitimos revelar e compreender. Se reconhecer é uma sombra do conhecimento, talvez seja hora de iluminar essa sombra com a luz da verdadeira interação.

Existencialismo Digital

A Condenação de Estarmos Conectados

Outro dia, estava rolando infinitamente o feed de uma rede social quando me peguei encarando uma tela vazia. Nada ali parecia real, mas tudo exigia minha atenção. Como um Sísifo digital, eu deslizava o dedo, subia e descia, em busca de algo que nunca se concretizava. Foi quando me ocorreu: será que estamos existindo de forma autêntica no espaço digital, ou apenas simulando presença?

O existencialismo clássico, de Sartre e Heidegger, nos coloca diante da liberdade radical e do peso da existência. "Estamos condenados a ser livres", dizia Sartre, pois não há essência antes da existência. Mas e quando essa existência se dá no meio digital, onde o ser parece fragmentado em múltiplas personas, postagens e narrativas? A liberdade virtual é autêntica ou apenas mais um labirinto sem saída?

Na era digital, a identidade é fluida e altamente performática. Criamos perfis, moldamos imagens, escolhemos quais aspectos de nós mesmos exibir e quais ocultar. Isso ecoa a ideia sartreana de "má-fé", quando nos enganamos sobre quem somos para evitar o peso da liberdade. Na internet, a má-fé se torna um algoritmo: curamos nossa própria existência para o olhar dos outros, ao ponto de não sabermos mais onde termina a performance e começa o ser.

Heidegger nos alertava sobre o perigo do "se" impessoal, essa força invisível que nos faz agir conforme "o que se faz". No mundo digital, esse "se" se manifesta na necessidade de engajamento: postamos não porque queremos, mas porque é o que se espera; reagimos para manter a relevância; participamos do fluxo incessante de informações para não sermos esquecidos. Assim, a angústia existencial ganha um novo formato: não apenas tememos a morte, mas também o esquecimento algorítmico.

O existencialismo digital também nos leva a questionar o sentido do real. Se "a existência precede a essência", mas nosso ser está diluído em redes que operam por padrões, preferências e manipulação de dados, quem realmente somos? E mais: a liberdade que Sartre tanto defendeu ainda existe quando nossas escolhas são moldadas por sugestões personalizadas e bolhas de informação?

A solução não é rejeitar a existência digital, mas assumir conscientemente seu peso. Se estamos condenados a ser digitais, que ao menos possamos ser autênticos nisso. Que escolhamos nosso ser para além das métricas e do desejo de validação. Talvez a saída esteja em um paradoxo: usar a conexão para nos desconectar do "se", para reencontrar a angústia produtiva de existir de verdade.

Enquanto isso, sigo rolando o feed, mas com outra consciência. O abismo do digital me encara, e eu encaro de volta.